O Quarto ao Lado e a vivência inquieta do ser jornalista
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Um conto sobre o controle e a agência sobre a morte e a recusa de se sentir inerte
Por João Bruno
Após construir uma carreira nada menos do que brilhante no cinema espanhol, Pedro Almodóvar deu um novo passo em sua filmografia com o lançamento de seu último longa, O Quarto ao Lado. Se todo novo filme do cineasta de 75 anos que impressionou o cinema com seu estilo kitsch e melodramático\, é cercado de grandes expectativas, imagine a sua estreia como diretor e roteirista de um longa metragem falado em inglês, com a categoria das estrelas Julianne Moore e Tilda Swinton como protagonistas.

Baseado no romance What Are You Going Through de Sigrid Nunez, O Quarto ao Lado trata do reencontro de duas antigas amigas, Ingrid, personagem de Julianne Moore, e Martha, vivida por Tilda Swinton. Quando jovens, ambas trabalharam para a mesma revista. Mas, com os imprevistos do destino, as duas seguiram por caminhos distintos e acabaram por se distanciar. Em uma tarde de autógrafos do lançamento de seu novo livro, Ingrid recebe a notícia de que a antiga amiga está muito doente e internada em um hospital próximo. Tocada pela informação, a escritora decide visitar Martha, dando início a reaproximação entre as duas mulheres.
O que se passa após o reencontro das protagonistas não pode ser encarado propriamente como um spoiler, já que faz parte da premissa do filme e está presente no seu material promocional, como o trailer. Mas, se quiser evitar a surpresa, recomendo que assista o longa antes de continuar a leitura.
Martha está padecendo de um câncer violento. Sua última esperança é depositada em um tratamento alternativo, oferecido por seus médicos. Mas o efeito previsto não acontece e a ex-correspondente de guerra é informada de que sua expectativa de vida é curta. Inconformada com seu estado, Martha decide pedir ajuda a Ingrid para realizar uma escolha difícil e incontornável: a eutanásia.
Em um filme sobre o controle e a agência sobre a morte, Almodóvar traz para a tela um interessante conto sobre a vida e os encantos e mistérios que a cercam. Ingrid e Martha são mulheres maduras, na altura dos 60 e poucos anos. Profissionais de prestígio, bem- sucedidas em suas carreiras. Personagens repletas de vivências, experiências, traumas, amores, paixões, realizações e frustrações. E não teria trabalho mais adequado para as duas do que o jornalismo, onde o interesse pela vida e seus meandros é atestado diariamente.
As amigas se conheceram em uma revista, na frenética Nova Iorque dos anos 1980, quando tudo de mais importante acontecia durante a noite, relembra a personagem de Tilda Swinton. Ingrid se aventurou pela carreira literária. Após lançar uma obra sobre os dilemas da morte, sua nova fonte de pesquisas envolve a inusitada relação entre a pintora britânica Dora Carrington e o escritor Lytton Strachey. Strachey era homossexual e Carrington casou-se com o homem pelo qual o escritor era apaixonado, formando um curioso triângulo amoroso. Durante 17 anos, Dora e Lytton viveram um intenso caso de amor, interrompido com a morte de Strachey, vítima de um câncer no estômago. Dois meses após a perda do amado, Dora suicidou-se com um tiro no mesmo órgão.
Martha, por sua vez, se tornou correspondente de guerra. Repórter do The New York Times, cobriu importantes conflitos mundo afora. Uma pessoa viciada em guerra e adrenalina, como a mesma se define. Um trabalho que exige a retração e o completo bloqueio emocional, impondo ao profissional a total ciência do ambiente em que está ocupando. Em certo momento, a personagem se depara com o livro The View from the Ground de autoria de sua homônima e óbvia inspiração, Martha Gellhorn. Gellhorn foi uma escritora e jornalista norte-americana, considerada por muitos como uma das maiores repórteres de guerra do século XX. Cobriu a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, entre outras, e circulou por vários países. Escreveu para revistas, como a Collier’s e a New Yorker, além de contos e romances.

“Você só ama verdadeiramente uma guerra, depois disso você só está cumprindo seu dever”, parafraseia a Martha da ficção ao relembrar de sua cobertura mais marcante, a Guerra da Bósnia. A personagem destaca a luta pela sobrevivência do povo bósnio contra um exército perfeitamente equipado como um episódio memorável. E não apenas de tragédias é marcada a trajetória da correspondente. Em um flashback, a repórter do The New York Times conta para a amiga sobre sua passagem durante a Guerra do Iraque, quando conheceu uma curiosa dupla de padres carmelitas espanhóis que insistiam em permanecer em Bagdá, mesmo com a cidade totalmente invadida.
É justamente esta mulher, vivida, repleta de experiências e histórias marcantes que irá se abater com uma doença terminal. Almodóvar não está interessado em se aprofundar nas questões morais e religiosas que geralmente permeiam o debate sobre a eutanásia e sim em apresentar o ato como um instrumento de recusa a inércia e ao entorpecimento provocados pela doença e seu tratamento ao corpo enfermo.
Martha opta pela eutanásia como uma forma de abreviar uma existência que não lhe faz mais sentido. Estar dependente de tratamentos e remédios pesados que lhe retiram o domínio sobre seu corpo e suas ações. E, principalmente, lhe retiram o prazer e curiosidade pela vida. Numa cena, a personagem revela que a leitura, mesmo de seus escritores favoritos, causa uma espécie de incômodo, pois sua mente sempre se desconcentra pensando na morte que se aproxima e em tarefas que julga mais urgentes com sua situação. O que a personagem sofre é uma morte em vida, uma vida sem a possibilidade do encanto, da magia.
Em paralelo com sua inspiração cinematográfica, Martha Gellhorn também teve um final trágico. Após uma longa batalha contra um câncer e, quase que completamente cega, ela cometeu suicídio aos 89 anos.
O jornalista é um ser movido a paixões. Afinal, o que faz um repórter levantar-se todos os dias da cama senão a vontade de apurar, investigar e apresentar informações ao público. E o jornalista esportivo que tem no futebol a sua maior obsessão, aguardando ansiosamente o dia de um FlaXFlu, para analisar qual time apresentou a melhor tática, quem fez a maior jogada da partida. Ou o crítico de cinema na espera que o próximo filme assistido se torne o mais novo clássico da sétima arte.
Ser jornalista é estar em constante interesse pela vida e pelo que ela pode oferecer. É estar sempre à espera de um grande personagem ou quando este não pintar, encontrar e se interessar por um de médio ou pequeno porte. Contar boas histórias, vindas de qualquer lugar. Se indignar com injustiças, buscar e cobrar explicações. Dar voz àqueles que não tem vez. Estar atento aos movimentos do bairro, da cidade, do país, do mundo. Exercer um papel social que transforme a sociedade. Assim como Martha, recusar se sentir inerte.
O Quarto ao Lado pode não ser um dos grandes filmes na carreira do Almodóvar (o que se trata de uma tarefa ingrata, quando se tem uma filmografia muito acima da média), mas não deixa de ser um exemplar singelo, elegante e maduro. Vencedor de um contestado Leão de Ouro no último Festival de Veneza, em cima de títulos como o nosso Ainda Estou Aqui, O Quarto ao Lado teve uma recepção morna por parte da crítica especializada e participação modesta na temporada de premiações no começo do ano.
Entre outras irregularidades, a que mais salta aos olhos (e aos ouvidos) é a dificuldade da fluência encontrada no roteiro. Trabalhar em um idioma diferente do nativo é sempre um obstáculo para qualquer cineasta que deseje se aventurar por outro mercado. Especialmente para Almodóvar que encontrou no espanhol a cadência perfeita para o seu cinema, sempre carregado de paixão, desejo e intensidade. Durante o filme, percebe-se a dificuldade do diretor em adaptar seu roteiro para o inglês, uma língua que ele explicitamente não domina. As falas soam artificiais, engessadas. Mas de certo modo acabam por reiterar o estranhamento que cerca a relação entre essas duas mulheres e a necessidade de reconstruir intimidade após tanto tempo separadas.
Profissionais de talento inquestionável, Julianne Moore e Tilda Swinton conseguem vencer a barreira promovida pelo texto e dão uma bonita interpretação às suas personagens, adicionando a camada de emoção e delicadeza ao longa que carece a direção e principalmente, o roteiro.

Os fãs mais puristas de Almodóvar podem estranhar o trabalho realizado pelo cineasta. Aqui, o diretor abandona seu estilo vibrante e passional para adotar uma estética e narrativa mais sóbria. Uma decisão que condiz com a nova fase da filmografia de Almodóvar, iniciada em 2019, com o belíssimo Dor & Glória. Aos 75 anos, o espanhol que despontou para seu país e posteriormente para o mundo através da liberdade e da transgressão promovidas pela Movida Madrilenha, movimento da contra-cultura que emergiu entre a juventude espanhola após décadas de ditadura, parece utilizar suas últimas obras como um espelho para refletir seu descontentamento com os rumos que o mundo tomou. Assim como em Mães Paralelas, sua indignação com a atual política mundial e a ascensão ameaçadora da extrema direita estão presentes.
Mas mesmo com todas desilusões, Almodóvar não se permite ceder ao desencanto. Como suas personagens, sempre existirá algo que nos impulsione para a vida. Novas histórias, inspirações, memórias e relações estarão sempre por surgir.
Sobre o tema de O Quarto ao Lado, o historiador e escritor carioca Luiz Antônio Simas diz: "O contrário da vida não é a morte. O contrário da vida é o desencanto”.
O Quarto ao Lado está disponível para assistir na Netflix e em aluguel on demand.
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