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UMA BELA VIDA: A Morte e o Jornalismo

Filme de Costa-Gavras traz à tona a discussão sobre o papel do jornalista na hora de lidar com a morte

Por Greco Campos


Cena do filme Uma Bela Vida. Lado a lado, estão os personagens Fabrice (à esquerda) e Augustín (à direita)
Cena do filme Uma Bela Vida. Lado a lado, estão os personagens Fabrice (à esquerda) e Augustín (à direita)

Se a morte é inevitável e se aproxima cada vez mais rápido, qual é a maneira mais digna para se partir? Essa é uma das perguntas que Uma Bela Vida não se propõe a responder, mas pelo menos levar para o espectador. “Le dernier souffle”, no original, é um filme francês de 2025, distribuído no Brasil desde a metade de julho. A obra é sobre o escritor Fabrice (representado pelo ator Denis Podalydès) e o médico de cuidados paliativos Augustin (representado por Kad Merad). Já mais velhos, juntos eles discutem filosoficamente questões conceituais e sociais da vida, da velhice e da morte enquanto, no decorrer do filme, vão sendo confrontados com diferentes manifestações da morte nos pacientes de Augustín.

Costa-Gavras, o cultuado diretor do filme, já foi indicado diversas vezes para os maiores prêmios do cinema. Já recebeu nomeações ao BAFTA e ao César (maior prêmio cinematográfico da França), além de vencer o Oscar, o Globo de Ouro, a Palma de Ouro e o Urso de Ouro. Já o filme que ele dirige é baseado em um livro também da França, que tem o mesmo título no original e não foi publicado no Brasil, escrito pelo jornalista e filósofo Régis Debray e o médico Claude Grange. 

Como uma síntese imagética de toda a mensagem e de todos os conflitos da obra, o primeiro take que temos é da pintura “Morte e Vida” de Gustav Klimt. Nela, a Morte, representada por uma caveira de preto, observa com inveja um amontoado pulsante e rosado de pessoas, uma por cima da outra, representando a Vida. É nesse embate conceitual, nessa fricção tênue entre viver e morrer, que a obra de Costa-Gavras finca seus pés.

Fabrice, que é o protagonista de fato do filme, escreveu, duas décadas antes da história se desenrolar, um livro sobre idosos, populações em crescimento e a inversão da pirâmide etária. Agora, com ele mesmo chegando à velhice, o escritor decide revisitar o tema olhando para um aspecto mais amplo da idade: a morte. É assim que ele conhece Augustin, que é o chefe de um departamento de cuidados paliativos de um hospital, e é confrontado com pacientes (idosos ou não) que se aproximam do fim da vida. O motivo que Fabrice tem para se jogar de cabeça nessa nova pesquisa é pessoal: existe um tumor adormecido em um de seus órgãos que pode a qualquer momento acordar e se espalhar por seu corpo. A ansiedade que inunda a mente do autor é o suficiente para, quase morbidamente, sentir necessidade de ver o sofrimento e óbito de perto sob o pretexto de escrever um livro sobre isso.

Apesar do peso e da angústia que decorrente do espectador, pelos olhos de Fabrice, ver repetidas vezes os falecimentos dos acamados e a desolação dos seus parentes, Costa-Gavras de modo algum transforma o filme em um grande funeral. Existe amor, ternura e cuidado no modo de representar cada um desses momentos. Mesmo no desespero de encarar a última fronteira, doentes e seus familiares encontram força uns nos outros. Em palavras de alento, em abraços apertados, nas visitas do pet da família ou em uma última refeição dos sonhos, cada um dos pacientes de Augustin deixa sua marca no filme, cada um sendo um pequeno capítulo dessa jornada que, pouco a pouco, vai mudando a percepção do protagonista e do espectador sobre as tragédias que se desenrolam em frente aos seus olhos.

Se, em seu coração narrativo, o filme fala sobre viver a vida sem grandes arrependimentos, sobre se cercar das pessoas que são importantes para você até o fim, o ponto de vista de Fabrice como o fio condutor da história vai mais a fundo ainda. Como escritor, a partir de seus encontros, e da sua própria sensibilidade em suas conversas com os enfermos, o personagem, mesmo que não seja um jornalista, acaba refletindo parte dos deveres da profissão jornalística.

Nos primeiros minutos do filme, depois de sair de uma tomografia, Fabrice, mesmo que de modo “descontraído”, conhece e entrevista Augustin pela primeira vez. Com uma curiosidade no olhar, ele pergunta para o médico sobre como ele se encantou com a área dos cuidados paliativos depois de anos sendo clínico geral. Questão a questão, o protagonista escuta atentamente cada relato do homem, suas reconsiderações morais com a medicina e suas reclamações no modo como essa esfera trata o setor em que ele trabalha. Quando perguntado de volta por Augustin se ele deseja ir com ele conhecer seus pacientes e ver seu dia a dia como médico, Fabrice entusiasticamente aceita.

A serenidade do protagonista em entrar nesse mundo, a compaixão com a qual ele fala com os acamados, a simpatia e o afeto que permeiam seus diálogos filosóficos com Augustin, tudo isso serve um propósito. Em uma época de debate em relação à “imparcialidade no jornalismo”, a obra mostra como, mesmo que se busque objetividade e distanciamento na produção de um conteúdo, também existe espaço para se envolver naquela história. Mesmo que nem toda matéria ou reportagem seja de um tema desejado ou interessante para nós escrevendo, deve haver um brio e um brilho em cada uma delas. O jornalismo é uma peça importantíssima do maquinário social, uma lupa no bom e no ruim de toda a sociedade, e Fabrice, mesmo sem ser jornalista, nos mostra isso.

E voltando para o tema da morte, ela também é uma temática inescapável no campo. O assunto pode ser segurança pública, cotidiano, celebridades, etc; que nem nas nossas próprias vidas, não tem como existir sem falar sobre a morte. Como ele é feito de estratos do mundo real, o jornalismo tem como dever relembrar a vida dos que se foram. Diariamente nos jornais são publicados os obituários: Fulano morre aos XX anos. E, como responsabilidade do repórter, esse tipo de texto tem que ser escrito com o maior cuidado possível. Aquela pessoa pode não estar mais aqui, mas seu legado, seus feitos, sua família e amigos ainda estão.

Em 2020, quando a pandemia do coronavírus se alastrou assustadoramente pelo mundo inteiro, o Brasil não foi poupado. Ainda no começo da crise, em uma época de desespero compartilhado, 10 mil vidas brasileiras foram ceifadas pelo covid-19. O Jornal O Globo, sabendo da obrigação social que tem como maior jornal do Brasil, fez uma capa especial como memorial, reunindo nomes dos falecidos. Por mais fácil que seja correr na direção dos números frios e despersonalizados, cada um ali foi uma pessoa, além de uma estatística, e os editores entenderam isso. Quando as contagens de mortos ultrapassaram 100 mil, o feito foi repetido na capa do jornal.

No ano passado, quando a revisora Denise Pegorim, da revista Piauí, faleceu após um AVC aos 66 anos, o próprio João Moreira Salles, documentarista e fundador da revista, escreveu um obituário para ela. Intitulada “Até o ponto final”, a matéria, repleta de amor entre dois amigos de longa data que infelizmente foram separados pelo destino, reafirma a importância do jornalismo e descreve um laço que, mesmo para um leitor que não conhece pessoalmente nenhum dos dois, é profundamente tocante. Curiosamente, o texto abre com João refletindo sobre um outro texto dele mesmo, falando sobre a morte do Pelé e também revisado por Denise. Nele, João afirma: “A troca de ‘Pelé morrera dois dias antes’ por ‘A notícia havia chegado dois dias antes’ tem o benefício de entrar mais suavemente no tema da morte, como quem prepara o terreno antes de dar a informação. Essa delicadeza também se reflete no modo de falar”.

Como tudo e todos, o jornalismo vive de constante, imparável e fascinante reconstrução. E se a compaixão e a dignidade quando se fala de morte ainda não estão no nível que deveriam estar, é hora de uma nova geração pegar seus microfones e seus teclados e criar um jornalismo que chegue nesse ponto. Uma bela vida ainda está disponível em alguns cinemas brasileiros e é uma viagem reflexiva pela vida e pela morte, e, seja como espectador ou como jornalista, é uma viagem que vale a pena trilhar. 


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