Por Carol Colla
E se um homem visse outro homem ser atropelado na rua e beijasse sua boca, momentos antes de morrer? E se um jornalista malicioso visse tudo? Essa é a premissa que deu origem à peça O Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues, adaptada para o cinema em 1981. O filme, dirigido por Bruno Barreto, traz a história para o cenário dos anos 80, se mantendo fiel à essência da obra original, publicada em 1960. Através da linguagem audiovisual, a história ganhou uma estética nova e outras camadas narrativas.
Contém spoilers!
Reprodução: O Beijo no Asfalto
O protagonista da história, Arandir (Ney Latorraca), tem sua vida virada do avesso após realizar um ato considerado por ele próprio humanitário e pela sociedade um crime: um beijo. Em uma tarde, caminhava com o sogro Aprígio (Tarcísio Meira), quando presenciou um atropelamento de um sujeito desconhecido. Arandir, então, chega perto do homem e beija sua boca. Porém, o mais interessante é que o filme não mostra essa cena, apenas mostra o momento seguinte, quando a polícia se aproxima do corpo rodeado de pessoas. Ao longo do filme, são apresentadas ao espectador as diferentes versões que vão sendo construídas a respeito do beijo no asfalto.
Logo após testemunhar o incidente, o jornalista Amado Pinheiro (Daniel Filho) procura o delegado Cunha (Oswaldo Loureiro) e propõe que eles investiguem o caso juntos. Amado quer informações em primeira mão, pois escreverá uma matéria escandalosa sobre o caso, que vai “vender jornal pra burro”. Amado Pinheiro, na verdade é Amado Ribeiro no texto original e na vida real. Ele trabalhou no periódico Última Hora junto a Nelson Rodrigues, que batizou o jornalista de O Beijo no Asfalto com o nome do colega. Porém, quando a peça foi adaptada para o cinema, o sobrenome foi alterado para Pinheiro, pois o uso do nome original não foi autorizado.
Cunha é convencido pelo argumento de que essa matéria poderia abafar outra matéria, na qual ele foi acusado de praticar tortura em sua delegacia. Então, a dupla mau-caráter inventa que os dois homens eram amantes e que Arandir, em uma crise de ciúmes, o empurrou na frente do ônibus, em seguida, dando um beijo de despedida. Assim, esse ato é denunciado como um atentado contra a moral pública na matéria veiculada pelo Última Hora. A repercussão é enorme e “sacode o Rio de Janeiro”, como previsto por Amado Pinheiro. No trabalho, Arandir é humilhado e tem que deixar o emprego de bancário. Na vizinhança, ele, sua esposa Selminha (Christiane Torloni) e sua cunhada Dália (Lídia Brondi) recebem xingamentos ofensivos e todo o tipo de provocações.
Em dado momento, as relações no núcleo familiar de Arandir entram em crise, porque a vida de todos virou um caos. Aprígio incentiva a filha a largar o marido e os dois discutem. Uma observação importante é que o sogro nunca pronunciou o nome de Arandir. Ele sempre teve implicância com o genro e o filme sugere uma hipótese: Aprígio tem ciúmes de Selminha, pois sente um amor romântico pela própria filha. Em algumas cenas Aprígio é confrontado nesse sentido. Outra suspeita que o filme levanta é que talvez exista uma atração sexual mútua entre Arandir e Dália, a irmã mais nova de Selminha. O longa-metragem explora a constante atmosfera de suspense, através de recursos como o jogo de sombras na iluminação e o uso de zoom in zoom out em muitas cenas. Todas essas tensões se intensificam ao longo da trama, levando as emoções dos personagens à flor da pele.
Diante das difamações da imprensa e da perseguição da polícia, Arandir foge e se hospeda em um hotel na Lapa. Cunha e Amado, implacáveis, seguem forjando evidências, registrando relatos falsos e produzindo uma narrativa impregnada de mentiras sobre o contexto do caso. Os dois capturam Selminha, porque acham que ela sabe onde o marido estava escondido. Porém, ela nega e defende o marido de todas as acusações. Ainda nessa sequência, a mulher é violentada sexualmente pelo jornalista e pelo delegado. A cena forte pode ser interpretada como uma reafirmação de poder por parte de Amado e Cunha. Eles fazem o que bem entendem para satisfazer seus desejos e atender a seus interesses. Na cabeça deles, todos estão em suas mãos, devido a influência que possuem.
Traumatizada, confusa e exausta, Selminha não responde ao chamado de Arandir, quando ele a convida para encontrá-lo no hotel. Quem vai no lugar de Selminha é Dália, que confessa seu amor a Aradir no quarto. Diz que não sente repulsa pelo fato de ele ter beijado outro homem e não se importa caso eles tivessem sido amantes. Arandir perde a paciência, cansado de ser desacreditado. Mesmo assim, mantém sua convicção: “Em toda a minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. É lindo beijar alguém que está morrendo. Eu não me arrependo”. De repente, Aprígio surge na porta e se depara com a filha no quarto do genro. Ele puxa Arandir para fora, o leva para a rua e saca uma arma.
Arandir se apavora com a situação e é pego de surpresa com mais uma confissão: o sogro diz que poderia perdoar todas as falhas de Arandir, menos o fato de ele ter beijado outro homem. O plot twist do filme é que Aprígio sempre foi apaixonado pelo genro e jurou só pronunciar o nome Arandir ao cadáver dele. “Meu ódio é amor!”, ele declara e atira no peito de Arandir. O corpo morto cai na rua, Aprígio diz o nome do genro três vezes e beija sua boca. Dália aparece no quadro, observando o pai e o cadáver do amado sem esboçar nenhuma reação. Dessa forma, o filme termina com a mesma atmosfera enigmática, que envolveu a trama desde o princípio.
O final trágico do protagonista é resultado da distorção feita pela imprensa e pelas autoridades civis em relação ao episódio do beijo no asfalto. Aprígio fica atormentado pela ideia de Arandir ter sido amante do homem atropelado. Mesmo não tendo vivido um romance com o genro, a obsessão que sentia por ele era tão grande, que se sentiu traído. Por isso, decidiu matá-lo. O Beijo no Asfalto é uma crítica hiperbólica aos meios de comunicação, personificados em Amado Pinheiro, que reproduzem o preconceito e seduzem o público através de histórias sensacionalistas. Além disso, o filme mostra como a pressão social gera conflitos internos nas pessoas e influencia os seus comportamentos.
Comentários