Gustavo Becker
O sensacionalismo já havia sido retratado no cinema em filmes como A Montanha dos Sete Abutres (1952) e O Jornal (1994). Ainda assim, nenhum deles explorou o sadismo daqueles que se valem desse tipo de jornalismo para enriquecer como O Abutre (2014). O meio encontrado por Dan Gilroy – que surpreende em sua primeira obra como diretor – de evidenciar esse egoísmo é pelo protagonista Lou Bloom, um homem sem escrúpulos com delirantes sonhos de grandeza.
Deturpando o conhecimento adquirido em textos e informações que memoriza da Internet, o personagem – desempenhado com intensidade por Jake Gyllenhaal – sente a necessidade de enxergar as pessoas sempre de maneira fria e utilitarista para atingir o sucesso financeiro que tanto almeja. Embora tais características sejam suficientes para indicar um indivíduo repulsivo, elas compõem apenas a superfície de uma personalidade assustadora e desagradável. Bloom é, em síntese, um sociopata odiável. Apesar disso, a jornada de sucesso percorrida por ele causa, de modo admirável, uma angústia que torna difícil perder a atenção ao longa-metragem.
(Pôster do filme / Imagem: Reprodução)
Os valores morais distorcidos do protagonista são denunciados logo na primeira cena, quando ele recorre à violência física para escapar de um segurança que o flagra roubando cercas de arame para revender. Em seguida, a história de Lou Bloom toma um caminho muito mais sombrio. No momento em que o personagem testemunha um cinegrafista freelancer documentar um acidente de carro de maneira invasiva, com o intuito de vender as imagens para telejornais sensacionalistas, o desempregado descobre o ramo profissional em que irá prosperar. Após isso, Bloom não tarda em registrar e lucrar, impiedosamente, com todo tipo de tragédia na cidade de Los Angeles.
Além da aflição constante, O Abutre estimula válidas reflexões acerca dos limites éticos e morais da mídia, e até que ponto se pode chegar para contar uma história. A falta de ética da personagem Nina, interpretada por Rene Russo, somada à sociopatia do protagonista, cai como uma luva para que os planos de ambos prosperem. Ela comanda um noticiário – para o qual o cinegrafista vende suas sangrentas imagens – da forma mais irresponsável que um profissional da imprensa pode trabalhar. O compromisso com a veracidade dos fatos documentados é deixado de lado para dar lugar à espetacularização da desgraça alheia. Esta postura, evidentemente, representa puro egoísmo e crueldade oportunista, já que explorar a tragédia para obter imagens chocantes e rentáveis não é uma atitude que está de acordo com a ética jornalística.
Nesse sentido, a diretora de notícias Nina provém todo o respaldo necessário para Bloom continuar a praticar suas atrocidades impunemente, além de incentivar o cinegrafista e enxergá-lo com admiração. Desse momento em diante, a busca incessante pela ascensão financeira torna ambos cúmplices na falta de ética e na distorção dos fatos. Com essa conduta, a dupla fere a Declaração de Princípios da Federação Internacional de Jornalistas, que estabelece que "informação em jornalismo é compreendida como bem social e não como uma comodidade, o que significa que os jornalistas não estão isentos de responsabilidade em relação à informação transmitida”. Fora da ficção, diversas empresas de comunicação seguem lucrando com o mesmo modelo de negócios.
(Início da união de Lou e Nina / Imagem: Reprodução)
No Brasil, o Código de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas também inclui como valores e preceitos fundamentais, a busca da verdade e a precisão das informações, o que é ignorado por alguns profissionais e veículos de imprensa. Programas como o apresentado por José Luiz Datena exibem perseguições policiais que, majoritariamente, envolvem cenas brutais e apelativas, criando narrativas amedrontadoras para os espectadores que, consequentemente, passam a acompanhar o telejornal com maior frequência, retroalimentando o ciclo.
E não há caricatura mais didática sobre o que esse tipo de jornalismo simboliza do que Lou Bloom. A sociopatia se torna sua maior vantagem em relação aos outros profissionais do ramo a partir do momento em que não apenas documenta os piores momentos da vida alheia de forma assustadoramente insensível, como também desfigura as cenas de crime e tragédia de modo a criar narrativas mais apelativas. O protagonista rompe qualquer barreira da ética quando, por exemplo, move o corpo de um homem, que havia sofrido um acidente de carro, no intuito de obter um melhor enquadramento em sua fotografia, sem oferecer assistência alguma ao indivíduo.
A entrega de Jake Gyllenhaal merece destaque por encarnar essa figura psicótica em uma performance igualmente aterrorizante. O ator – que também produz o longa – atingiu um aspecto doentio, que veste muito bem seu personagem, com cabelos oleosos, olhos constantemente arregalados e um emagrecimento de 10Kg.
Há de se reconhecer, também, a habilidade do cineasta Dan Gilroy em destacar como cada ação condenável de Bloom é recompensada com sua ascensão profissional como repórter, o que confere tensão constante ao filme. Um mérito da direção é conduzir a narrativa e transmitir a mensagem de maneira simples e discreta, com planos longos que elevam a tensão das cenas de suspense. Isso sem investir em ângulos de câmera extravagantes que pudessem ofuscar as performances e o roteiro, área em que Gilroy se notabiliza: o público tem suas expectativas quebradas a todo momento, já que o protagonista não tem um arco dramático que evidencie qualquer mudança em seu comportamento. Do início ao fim da história, sua índole permanece inalterada. A grande mudança é a descoberta de um mundo onde a sociopatia joga a seu favor e passa a ser um trunfo.
Aflitivo e realista, O Abutre é um excepcional estudo de personagem e uma condenação categórica à persistência da postura sensacionalista em muitos veículos de comunicação que, se apoiando nos moldes formais do jornalismo, desfrutam do lado mais sombrio do ser humano para converter sua tragédia em espetáculo.
Disponível na HBO GO.
Gostei da forma como o texto trata de temas de interesse do jornalismo, mencionando códigos de ética da profissão que teriam sido violados por personagens do filme. O paralelo com a realidade brasileira também foi bastante apropriado na citação a um programa de TV nacional, lembrado para exemplificar a espetacularização da notícia e da violência. De quebra, o texto ainda destaca aspectos da direção e do roteiro e dá pitacos certeiros sobre o perfil psicológico do protagonista. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Excelente texto!