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“Não Olhe Para Cima” e a responsabilidade jornalística com as verdades desconfortáveis

Júlia Aguiar


O filme “Não Olhe Para Cima”, do diretor Adam McKay e do jornalista David Sirota, conta a história da estudante de astronomia Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e do seu professor de doutorado, Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio). Os dois cientistas descobrem um cometa no observatório da universidade e, após fazerem os cálculos, chegam à conclusão de que esse cometa se chocará com a Terra em pouco mais de seis meses, o que extinguirá a vida no planeta. A certeza do impacto é de 99,7%, ou seja, uma certeza absoluta no campo da ciência. Contudo, apesar da gravidade da situação, esses dois cientistas são ignorados e apontados como malucos pela sociedade.



(Imagem/Reprodução)


A obra é uma grande sátira e, de acordo com Adam Mckay, ela foi escrita com a intenção de criticar como a população, mídia, governos e corporações lidam com a crise climática, mas acabou espelhando também, de forma quase perfeita, a realidade vivida durante a pandemia de COVID-19. O negacionismo científico, a divisão política, a divulgação de fake news, a falta de iniciativa de governos e a confusão do público são todos temas familiares ao caótico ano de 2020- e o filme revelou de maneira satírica como reagimos às verdades desconfortáveis trazidas a nós pela ciência. McKay escreveu o roteiro antes da pandemia e revelou que, durante esse período, ele se surpreendeu com o quanto a realidade estava se aproximando do que havia escrito.


Apesar de apontar o dedo para vários setores da sociedade, McKay se mostra especialmente crítico do jornalismo e de veículos de mídia contemporâneos, nos quais encontrou inspiração para o filme:


“Comecei a falar com muitos cientistas e continuei à procura de boas notícias, mas nunca as recebi. Tudo o que estava ouvindo era muito pior do que as notícias que passavam nos principais meios de comunicação social. Por isso estava falando com um amigo jornalista, David Sirota, e nós dois falávamos as mesmas coisas: "Acredita que isto não está sendo coberto pela mídia? Que está sendo empurrado para o fim da história? Não há manchetes!" E Sirota disse de improviso: "É como se um cometa estivesse vindo em direção à Terra e fosse destruir todos e ninguém se importasse" e eu fiquei tipo: essa é a ideia.”- disse o diretor e roteirista em entrevista para a Entertainment Weekly.


Quando os dois astrônomos alertam o governo dos Estados Unidos sobre o cometa, é concedida a eles uma audiência de 20 minutos com a presidente (Meryl Streep), que, valorizando a sua estratégia eleitoral acima do destino do planeta, decide "ficar quieta e avaliar a situação". Desesperados, os cientistas se perguntam: “e agora? o que faremos?”. Então, como alternativa diante da negligência do governo eles recorrem à imprensa e vazam a notícia para o prestigioso jornal “New York Herald” com a esperança de que, uma vez que a informação fosse divulgada, a população se revoltasse e o governo fosse obrigado a tomar providências para impedir o impacto do meteoro.


Utilizar a imprensa como um órgão de denúncia de abuso ou irresponsabilidade por parte de grandes poderes, como governos ou empresas, é algo relativamente comum. Temos grandes exemplos, como o episódio retratado no filme “The Post”, em que a divulgação por parte do jornal The Washington Post de um relatório secreto revelando que o governo dos EUA omitia informações negativas sobre a missão americana na guerra do Vietnã resultou em uma onda de pressão popular para a retirada das tropas do território vietnamita. A imprensa tem potencial para funcionar como um importante órgão democrático e que pode servir para denunciar e controlar abusos de poder. É por esse motivo que muitas vezes é chamada de “o quarto poder”, pois ela tem grande influência sobre a opinião pública, que por sua vez, tem grande capacidade de pressão sobre os políticos. Contudo, o que acontece quando o principal foco da opinião pública é a notícia do término do romance entre duas celebridades?


No filme, o público não dá atenção à ameaça de um meteoro vindo em direção à Terra. Em uma reunião do “New York Herald”, os editores revelam que a reportagem dos astrônomos teve menos cliques do que matérias sobre clima e trânsito e que foi brutalmente ofuscada por fofocas de celebridades. Em seguida, chegam à conclusão de que levaram a história o mais longe que puderam. Nesse cenário, temos, de um lado, um público apático que se importa apenas com assuntos superficiais e, de outro, uma mídia que satisfaz a vontade desse público, pois se preocupa somente com a sua audiência e a quantidade de cliques de suas matérias. Assim, vemos o jornalismo desprezar sua responsabilidade de contar a verdade. Em vez de garantir a democracia e contrariar esse sistema hipercapitalista que visa o lucro a todo custo, o jornalismo acaba se tornando parte desse sistema, contribuindo para o problema e intensificando a alienação da população.


Para entendermos ainda melhor a crítica de Adam McKay, vemos uma cena em que os dois cientistas dão uma entrevista a um programa matinal nacional de grande audiência como uma tentativa a mais de chamarem a atenção do público. Porém, eles não obtêm sucesso. Durante o programa, os apresentadores não levam o assunto com seriedade e tentam deixar o clima da conversa “divertido e engraçado” (mais uma vez com o foco em não perderem a audiência), duas atitudes incondizentes com a perspectiva de destruição total do planeta. Extremamente frustrada, Kate pede que o assunto seja levado com a seriedade que merece e grita em um total desespero ao sentir que não está sendo ouvida. Essa entrevista se assemelha à frustração de muitos cientistas ao falarem do aquecimento global ou da pandemia de COVID-19.


É impossível não relacionar essa cena de Kate com a entrevista da bióloga Natália Pasternak para a TV Cultura em que ela se irrita com a apresentadora e explica que o segmento de notícia sobre a Covid não deveria ser leve, pois “tem pessoas morrendo”. Em uma matéria exclusiva para o “The Guardian”, o cientista climático Peter Kalmus também diz que o pânico e o desespero de Kate e Mindy no filme espelham o mesmo sentimento de muitos cientistas na vida real. Sobre a cena, ele afirma: “Consigo me relacionar com isso. É esta a sensação de ser um cientista climático hoje em dia.”


Em entrevista exclusiva ao Pitacos, a coordenadora do fórum de ciência e cultura da UFRJ e autora do livro “O Dia em que Voltamos de Marte: uma história da ciência e do poder com pistas para um novo presente”, Tatiana Roque, disse que os veículos de comunicação fizeram um trabalho importante ao divulgarem os dados e darem voz aos cientistas, mas também criticou a forma como a mídia trata pautas científicas:


- “O papel da mídia para tratar questões da ciência tem sido falho porque a ciência opera de um modo que não é o mesmo da disputa de opiniões na mídia. A mídia tem essa tendência de ouvir os dois lados, o que não necessariamente, como no caso de opiniões baseadas na ciência, deve se fazer. Foi com essa estratégia também que o negacionismo cresceu, como mostram alguns trabalhos sobre o negacionismo climático. O filme Não Olhe Para Cima é muito bom para mostrar a questão do negacionismo em que opiniões aleatórias acabam tendo o mesmo peso que opiniões embasadas na ciência. Só que, no caso do negacionismo climático, o que acontece é que essas opiniões não são aleatórias. Elas foram fomentadas por empresas de petróleo que não tinham interesse na diminuição da emissão de combustíveis fósseis.”


Como um espelho da realidade, o filme retrata a mídia como um grupo de empresas gananciosas que têm como único objetivo conseguir cliques e manter sua audiência alta, ignorando ou subestimando fatos urgentes e relevantes, pois estes poderiam afetar o número de espectadores. Assim, alimentam um círculo vicioso: o público quer ver um conteúdo que os anestesie dos problemas maiores que perturbam o mundo, e a mídia se dobra a essa vontade e lhes dá exatamente isso.


Grandes veículos de comunicação seguem publicando propaganda de combustíveis fósseis, ignorando ou sendo otimistas em relação às notícias de aquecimento global e dando cada vez mais espaço ao noticiário de celebridades e a conteúdos fáceis que não tirem leitores e espectadores de sua zona de conforto. Vivemos nessa distopia da informação e o jornalismo tem uma grande responsabilidade. O dever dos da mídia hoje, mais do que olhar para cima, é olhar para si.

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