Um crime entre nós: filme que expõe a triste realidade da exploração sexual de menores no Brasil
Rafaela Gama
O documentário Um Crime Entre Nós, dirigido por Adriana Yañez e lançado em 2020 no Globoplay, denuncia o quadro endêmico de violência e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, buscando informar o público sobre as dimensões dessa problemática e instruí-lo para o combate desse tipo de violência.
(Poster do filme presente no Globloplay)
A produção cinematográfica conta com a participação de educadores, psicólogos e ativistas dos direitos das crianças, entre eles o apresentador Luciano Huck, a youtuber Jout Jout e o médico Dráuzio Varella. Todos eles expõem suas visões acerca da persistência da exploração sexual de menores e propõem soluções para a interrupção de ciclos de desigualdade social no país que propiciam o cenário apresentado pelo filme.
Cultura permissiva
Segundo o The Freedom Fund, uma organização internacional que atua na proteção de crianças e adolescentes contra diversas formas de violência, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de exploração sexual infantil. Apesar desse preocupante quadro, a sociedade parece, muitas vezes, buscar distanciamento desses acontecimentos tão horríveis como maneira de obter a isenção da sua responsabilidade de combatê-los, de acordo com a perspectiva do doutor Dráuzio Varella.
A persistência e a extensão dessa prática no país também estão associadas ao silenciamento das vítimas determinado pelo machismo estrutural. O padrão de comportamento socialmente preestabelecido para cada gênero baseia-se na coisificação das mulheres e na permissão dada aos homens a fazerem o que quiserem com elas, especialmente em relações estabelecidas entre homens brancos e mulheres não brancas e periféricas. As meninas são tradicionalmente ensinadas a serem submissas e os meninos são estimulados a agirem como “machos” desde sua infância, sendo a instrução acerca do consentimento para esses dois grupos negligenciada pelas famílias e pelos educadores.
Além disso, a professora de sociologia do Wheelock College Boston, Gail Dines, afirma no documentário que a internet tornou a pornografia mais acessível, mais disponível e mais anônima, possibilitando o acesso a pornografia violenta (hardcore). Esse se configura, muitas vezes, como o primeiro contato de meninos ao redor de todo o mundo com a educação sexual e, como indicam as pesquisas desenvolvidas por Dines, aumenta as chances de eles cometerem abuso sexual, pois o consentimento não é tratado como uma questão preliminar. Dentro desse universo, capaz de faturar milhões anualmente, os grupos de pornografia infantil também são apontados no filme como áreas de fácil acesso, sendo “novinha” o termo mais pesquisado nos sites de pornografia brasileiros, de acordo com um estudo realizado pela revista britânica The Economist.
Definição segundo a lei brasileira
Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, afirma ao longo do documentário que abuso e exploração sexual são diferentes, mas estão interconectados. Apesar disso, a sociedade enxerga a vítima de maneira diferente quando ela é abusada dentro de casa em uma idade mais nova e quando é explorada sexualmente na rua ao estar mais velha, não identificando que se trata de um ciclo perverso de naturalização desse abuso que impede que essas meninas escrevam novos capítulos de suas histórias ao se livrarem dessa situação. Ela define a exploração sexual infantil como uma troca mercantil de qualquer elemento: dinheiro, comida, carona, convites, entre outros recursos.
Luciana também chama atenção para a existência de abusadores de todas as classes sociais, mas destaca a recorrência de abusadores ocasionais (ou eventuais) que compõem o quadro de exploração sexual. Esses são aqueles que não fazem viagens com esse objetivo e não se sentem abusadores, apesar de o código penal definir como crime de exploração sexual o pagamento para fazer sexo com meninas de 14 a 18 anos com pena de prisão para quem tem a relação, para quem agencia a vítima e para o estabelecimento que aceita essa situação.
Opinião pública
A socióloga Adriana Araújo contribui para a discussão levantada no filme ao caracterizar a sociedade como “adoecida” pela incompreensão do sofrimento dessas meninas, pela apatia frente ao estado que as levou àquela situação, pela culpabilização das vítimas e pela isenção da responsabilidade daqueles que se beneficiam disso.
A participação do apresentador Luciano Huck evidencia a maneira enviesada como a população enxerga esse cenário. Huck visita o porto de Cacau Pirêra, no Amazonas, conversa com os locais e extrai respostas desanimadoras. Eles, muitas vezes, culpabilizam as meninas nas ruas por “falta de vergonha na cara" ou por “gostar de dinheiro” e pouco é refletido pela população sobre a culpa do agressor (o ‘gringo’ que oferece dinheiro) e sobre a falta de oportunidades no local. Um entrevistado reconhece que não é uma situação normal, mas pela ausência do poder das autoridades a situação se normaliza e, como propõe Huck, vira “paisagem”.
(Luciano Huck entrevistado a população local em um bar próximo ao porto de Cacau Pirêra, no Amazonas)
Os relatos de agressão sofridos pelas vítimas e ilustrados através de desenhos poucos descritivos e simplistas, assim como aqueles feitos por crianças, compõem as partes mais comoventes do documentário. Em especial, é marcante o relato contado pela educadora Amanda Ferreira de uma vítima iniciada na prostituição infantil aos 11 anos pelo agenciador de turismo de uma empresa em Manaus. Ele trazia norte-americanos para um festival de pesca na cidade e, além de abusar sexualmente da menina, preparava-a para receber outros clientes. Eles a seduziam oferecendo coisas simples, como a oferta para conhecer o iate, um refrigerante ou um “dinheirinho” e a menina contava que voltava lá sempre, uma vez que eles diziam que um dia a levariam para a Disney- era seu sonho que um daqueles turistas a levassem para uma vida melhor.
(Desenho ilustrativo da história contada por Amanda Ferreira)
Denúncia
A delegada da Polícia Civil ouvida no filme, Joyce Coelho Viana, afirma que a lei faz o seu papel ao definir o que seria a exploração sexual, mas reconhece que a falha está no aplicador da lei, responsável, muitas vezes, por negligenciar esses casos ao enxergá-los como costumeiros ou por aceitar as desculpas do abusador.
A mensagem deixada por Amanda Ferreira dá destaque à necessidade de que todo o sistema de acolhimento e justiça esteja preparado para dar o suporte para a vítima quando ela escolher denunciar para que ela não desista, incluindo o conselho tutelar, os policiais na delegacia e até mesmo os profissionais de saúde.
Yuri Giuseppe Castiglione, promotor de Justiça da Infância e da Juventude, reconhece que anteriormente a vítima era interrogada para contar sua história de abuso e exploração de maneira exaustiva até que, muitas vezes, ela começasse a negar o fato como forma de se proteger. Com uma mudança legislativa recente (2017), passou a ser adotado o depoimento especial e único, no qual a vítima é ouvida apenas uma vez por um profissional capacitado para tomar todas as medidas protetivas necessárias.
Entretanto, a falta de denúncias também se apresenta como um desafio a ser superado. Segundo uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2018, cerca de 72% das pessoas que testemunharam crianças e adolescentes sendo explorados não denunciaram. A socióloga Adriana Araújo, nesse momento decisivo do filme, afirma com assertividade que as pessoas que presenciam esse cenário têm apenas duas opções: denunciar ou ser cúmplices.
(Poster do filme)
Prevenção
A psicóloga Consuelena Lopes Leitão destaca o papel da escola na prevenção desse tipo de violência. As instituições educacionais apresentam a responsabilidade social de realizar debates acerca de questões como cidadania, gênero, relações de poder e estimular o respeito entre meninos e meninas. A importância do ensino sobre consentimento deve ser considerada e instruções devem ser dadas para que as crianças se apropriem do conhecimento do próprio corpo e reconheçam que seus corpos devem ser respeitados.
A assessora de Proteção à Infância, Karina Lira, afirma que o enfrentamento da violência envolve desenvolvimento de habilidades de autoproteção das crianças, mas também o fortalecimento dos adultos que cuidam das crianças, como a escola, as igrejas e as organizações comunitárias.
O documentário termina com uma mensagem comovente de Amanda que convoca a união da sociedade em prol de um mundo de paz, no qual a infância de ninguém seja roubada. Ao final, várias crianças de Manaus e Recife são entrevistadas e questionadas sobre o seu maior sonho. Esses meninos e meninas respondem com o sorriso no rosto e comentam sobre as profissões que desejam ter, mas também alguns falam sobre viajar para Disney, fazer exposição de arte de massinha e ajudar em causas sociais. Pode-se dizer, portanto, que aquilo que essas crianças querem é ser criança e poder sonhar com um futuro brilhante à frente delas.
Informe-se e denuncie:
“Quanto mais você sabe, mais você vê” – DISQUE 100
Obrigada!
É extremamente chocante o quanto o tema é, muitas vezes, invisível à nós. Texto extremamente informativo e conscientizador.
Adorei o texto! Com certeza vou assistir o documentário! Infelizmente essa realidade tão absurda e tão horrorosa ainda existe…
Excelente comentário sobre p documentário. Parabéns, Rafaela Gama.