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“Stranger Things” e o machismo no jornalismo

Como a rotina da mulher na redação é retratada na série que se passa nos anos 80


Ana Beatriz de Andrade



Poster da série “Stranger Things” (Imagem: reprodução/Netflix)



“Stranger Things” é uma série de terror e ficção científica, criada pelos irmãos Matt Duffer e Ross Duffer, exibida pela primeira vez pela Netflix no ano de 2016. A produção é uma série de época, que se passa no início dos anos 80, nos Estados Unidos, em Hawkins, uma pequena e misteriosa cidade do estado de Indiana.

A história gira em torno do desaparecimento do menino Will (Noah Schnapp) e das descobertas de seus parentes e amigos sobre uma nova dimensão sombria. A maioria dos personagens principais está na adolescência ou chegando à vida adulta. Por isso, situações como o primeiro amor, primeiro beijo, dificuldades na escola e no primeiro emprego marcam a narrativa.


Nancy Wheeler (Natalia Dyer), é uma menina corajosa, curiosa e determinada. Por todas as temporadas da série, é possível acompanhar o seu crescimento, amadurecimento pessoal e, principalmente, ver a mudança de seus problemas conforme ela deixa a adolescência e chega na vida adulta.


Nancy tem como grande objetivo se tornar uma jornalista, e quando consegue o seu primeiro estágio no jornal de Hawkins, o Hawkins Post, as coisas não saem da forma que ela imaginava. A personagem e o seu namorado, Jonathan Byes (Charlie Ross Heaton), conseguem a oportunidade de emprego. Porém, enquanto as fotos de Jonathan fazem sucesso no jornal, Nancy não tem outra função além de servir cafés, mesmo sendo uma excelente escritora.


Durante umas das cenas da terceira temporada, Nancy está no carro com Jonathan, indo em direção ao Hawkins Post. Após uma pequena discussão sobre o quanto estavam atrasados, Nancy diz o seguinte: “Eu sou a máquina de pegar cafés. Eles não gostam mesmo de mim, nem me respeitam como um ser humano vivo com um cérebro”. A fala mostra o quanto a personagem estava decepcionada, mas ao mesmo tempo se esforçando ao máximo para ser aceita como uma colega de trabalho.


Natalia Dyer interpreta Nancy Wheeler em Stranger Things: rotina no jornal se resume a servir café aos chefes. (Imagem: reprodução/Netflix)


Na redação do jornal a representatividade feminina é praticamente nula, Nancy é a única mulher no meio de inúmeros homens. Ela sempre tem a sua opinião descredibilizada e considerada inferior à opinião dos outros repórteres. Além disso, é possível reparar os comentários machistas que a personagem presencia no ambiente de trabalho, onde a hipersexualização feminina e o machismo incrustados na fala dos jornalistas dos anos 80 ficam evidentes.


Em entrevista ao The Hollywood Reporter, Natalia Dyer comenta sobre a abordagem da série perante as situações desconfortáveis e machistas que a personagem vivenciou dentro do ambiente de trabalho.


“Acontecia na época e ainda acontece hoje. Eu estou orgulhosa que colocaram isso no roteiro. Também deram a Nancy a oportunidade de ter um conflito diferente. Ela é uma mulher corajosa, inteligente, e essa é a primeira vez que o mundo a joga para trás" conta a atriz.


Natalia também comentou como ser descredibilizada por homens fora das telas a “ajudou” no desenvolvimento da personagem, já que - infelizmente - é uma situação comum a muitas mulheres.


“É tão fácil de se identificar. E, claro, é uma série de época, anos 80... Mas é importante reconhecer que as pessoas obviamente ainda estão passando muito por isso. É fácil para uma mulher, para mim, ir lá e interpretar a cena. Eu sei como é ser desprezada por homens mais velhos e subestimada.”


Para analisar as desigualdades causadas pelo machismo, que ainda existem no ambiente de trabalho das jornalistas, Cristine Gerk, jornalista e editora do Jornal Extra, das organizações Globo, aceitou participar de uma entrevista exclusiva ao Pitacos.


Pitacos: Na série Stranger Things, que se passa nos anos 80, e que foi escolhida para essa matéria, a personagem Nancy percebe a falta de representatividade feminina em seu ambiente de trabalho, onde é a única mulher no meio de vários homens. Nos dias de hoje, esse desfalque de presença feminina no ramo do jornalismo continua ocorrendo?


Cristine: Depende de que campo específico você está falando. Mas, de modo geral, eu não acho que haja um desfalque feminino importante, falando de uma forma genérica. Por exemplo, nas redações em que eu trabalhei até hoje e onde trabalho atualmente, a presença feminina era maior em termos quantitativos, mas isso não significa que no ponto de vista qualitativo, ou seja, nas funções que exercem, da maneira que exercem, elas estejam em vantagem.


Pitacos: Desde quando começou a exercer a sua profissão no ramo jornalístico, até os dias de hoje como editora de um grande jornal, você percebeu algum caso de não credibilidade ao seu trabalho e o interpretou como uma questão de gênero?


Cristine: Sim, muitas vezes. Acredito que isso seja muito recorrente no ambiente de redação, que ainda é um ambiente machista. Muitas vezes a mulher dá uma ideia e é vista como nada demais. E, depois, o homem na posição de chefia dá a mesma ideia e é aplaudido. Aquela coisa da mulher ser cortada, manterrupting, acontece o tempo todo, a mulher está falando e o chefe corta. Em outra empresa que eu trabalhei, no início da carreira, eu tinha sido convidada para uma cobertura internacional muito importante e relevante, e imediatamente começou um boato de que eu estava tendo algum relacionamento com o chefe que me convidou. Evidentemente, eu não estava tendo relacionamento nenhum, isso ainda acontece muito com mulheres, não só no jornalismo, mas infelizmente em outros ramos profissionais. A questão da desigualdade de salários e cargos, isso vem melhorando, muitas mulheres estão conseguindo driblar isso. Mas, de modo geral, os chefões, que estão lá no topo mesmo, ainda são homens.


Pitacos: Nos dias de hoje, infelizmente é muito comum vermos casos de violência, abuso e assédio contra as mulheres. Se tornou costumeiro ver, ler e ouvir casos de feminicídio e violência contra a mulher em jornais impressos, televisivos e na rádio. A exemplo disso, podemos citar o caso da Jornalista Jéssica Dias, que foi beijada em seu rosto sem o seu consentimento por um torcedor, enquanto trabalhava ao vivo. Portanto, ser mulher e exercer uma profissão que te coloca em destaque, como editora de um jornal, te assustou ou te desencorajou de exercer a profissão?


Cristine: Sobre o assédio, isso acontece muito, quando a mulher vai entrevistar e quer obter uma informação e a fonte se insinua, faz piadinha… Então, é um desconforto grande ao longo da apuração. Acho que isso acontece mais fora da redação do que dentro, embora dentro também aconteça. Assim como, infelizmente, acontece em outras profissões: cantadas inadequadas dentro do ambiente profissional, etc. Isso nunca, jamais me desencorajou a seguir a profissão, jamais! Sempre gostei e quis, e sempre tentei me colocar. Embora, em alguns momentos tenha sido mais difícil… Já teve ocasião de eu ficar bem abatida mas não ao ponto de querer desistir da profissão e de me sentir desencorajada. Eu acho que a gente tem que se colocar, tem que lutar contra. E é muito bom que na universidade estejamos mais atentos a isso, discutindo isso. De modo geral, eu acho que na sociedade nós estamos evoluindo nesse sentido, embora ainda tenha um longo caminho a percorrer, mas a gente está evoluindo, está debatendo, está apontando, mostrando que isso ocorre e tentando ver se a gente consegue dizimar esse problema, pelos menos nas próximas gerações, se a gente não conseguir ainda nessa. E é muito importante que no próprio Jornalismo, que é uma arena de debate, as mulheres ocupem cada vez mais esse espaço e coloquem esse tema em evidência no seu trabalho, no dia a dia, nas matérias que escrevem. Quanto mais mulheres estiverem conscientes da importância dessa discussão, mais destaque essa discussão ganha em toda a sociedade.



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