Gabriella Almeida
Um menino. Que se torna militar. Que se torna político. Que se torna deputado. Que se torna presidente. É o que conhecemos sobre a trajetória cheia de polêmicas do homem que ocupa o mais alto cargo de Brasília. Jair Bolsonaro é o nome que não sai das páginas de jornais e nem da boca do povo. Mas isso significa que, de fato, o conhecemos? Talvez nem toda a apuração do mundo seja suficiente, mas essa é a proposta do “Retrato Narrado”, novo podcast jornalístico da Revista Piauí. Apresentado por Carol Pires, o programa busca entender, por meio de depoimentos de amigos e inimigos, como o menino de farda chegou ao Palácio da Alvorada.
Imagem: Revista Piauí
Em parceria com a Rádio Novelo, “Retrato Narrado” é a nova série original do Spotify e da Revista Piauí. O programa analisa profundamente uma personalidade de relevo, desde suas origens, passando por cada etapa marcante de suas vidas, até o tempo presente. Com seis episódios por temporada, e em torno de 45 minutos por episódio, o programa é uma verdadeira coletânea de momentos da vida pessoal e pública do perfilado. O primeiro analisado não poderia ser outro: Jair Bolsonaro, dono de uma personalidade contraditória, violenta, e quase sempre absurda demais para ser levada a sério. Como diz a repórter Carol Pires, seu governo é um verdadeiro estudo de caso, não só no Brasil, mas no mundo todo, e é preciso dar um passo para trás a fim de entender tudo que está acontecendo.
No primeiro episódio da temporada - “Em Busca de Eldorado” -, Carol Pires fala um pouco sobre os primeiros contatos que teve com Bolsonaro, em 2016, quando ele ainda era um deputado federal com pouca relevância no cenário político, mas impossível de ser ignorado. Para ela e todos os outros jornalistas políticos, era praticamente impossível que um político do “baixo clero” - gíria conhecida no Congresso para falar de deputados com pouca influência - pudesse ganhar uma eleição para a Presidência. As apostas eram em Geraldo Alckmin, que tinha mais de cinco minutos de propaganda política diária, enquanto Bolsonaro tinha apenas oito segundos. Mas o jogo virou, e Bolsonaro venceu.
Enquanto a maioria das pautas jornalísticas se atentam aos absurdos proferidos pelo atual presidente e o caos de seu governo, Carol Pires resolve ir pelo caminho inverso. Ela retorna ao início de tudo, para Eldorado, no sul de São Paulo, onde Bolsonaro viveu dos 11 aos 18 anos. É ali que nasce uma das maiores obsessões de Bolsonaro: foi em Eldorado que, em 1970, em plena Ditadura Militar, o famoso guerrilheiro Carlos Lamarca trocou tiros com os militares e fugiu da cidade. Bolsonaro, na época com 15 anos, supostamente estava próximo do incidente e teria até mesmo dado informações sobre as trilhas da mata para ajudar na captura de Lamarca.
Para Bolsonaro, o guerrilheiro era protegido pela família de Rubens Paiva, deputado federal que, em 1971, foi levado pelo DOI-Codi e torturado até a morte. A família Paiva era proprietária da Fazenda Caraitá, em Eldorado, e, de acordo com Bolsonaro, era ali que os guerrilheiros de Lamarca ficavam escondidos. “Área de guerrilha. Rubens Paiva deu a área de guerrilha para Lamarca. Então não venham falar que Rubens Paiva é um santo, porque também não é”, diz ele aos berros. Mesmo sem nenhuma prova para sustentar a sua afirmação e indo contra todas as investigações feitas na época, ainda durante a ditadura, os devaneios da adolescência se tornaram políticos. Em 2014, na inauguração do busto de Rubens Paiva na Câmara dos Deputados, Bolsonaro teria gritado que “ele teve o que mereceu” e cuspido na estátua na frente da família Paiva.
Busto de Rubens Paiva na Câmara dos Deputados. Reprodução: Zeca Ribeiro/ AG Câmara.
Indo além das origens de suas obsessões, Carol Pires procura em Eldorado pessoas que conheciam Bolsonaro e encontra o Sr. Valdemir Roque Vegini, que foi seu professor em 1972. Ele diz ter apoiado Bolsonaro na sua escolha de entrar para o Exército, não por apoiar o militarismo, mas por ser uma profissão segura. Quanto à família do presidente, Valdemir alega que sempre foram “gente fina, gente simples.” Ela também encontra, em uma mesa de bar próxima a antiga casa da família Bolsonaro, amigos de infância do presidente, chamados Dito, Chico e Adelmir: “Ele era muito inteligente. O apelido dele era ‘invertido’, porque ele pensava muito lá na frente”, diz um deles.
De indicação em indicação, Carol Pires acaba conhecendo o melhor amigo de Bolsonaro, chamado João Evangelista. “Até hoje, ele é muito brincalhão com os amigos dele”, diz Evangelista, que costuma viajar com o filho para a residência do presidente em Angra dos Reis. Ele diz também que, durante a adolescência, os dois iam pescar e vendiam os peixes pela cidade, a fim de comprar ingressos para o cinema de sábado. Após a eleição, Evangelista visitou Bolsonaro no Rio de Janeiro e levou com ele dois cachos de banana de Eldorado.
É interessante o depoimento de Evangelista sobre o resultado das urnas em Eldorado, onde Bolsonaro recebeu apenas 55% dos votos. De acordo com o amigo do presidente, “lá, quilombolas são muitos; índios são muitos”, dando a entender que eles não votaram no candidato. Não é nenhuma novidade a aversão de Bolsonaro à questão indígena, já que para ele, a demarcação de terras atrasa o progresso. “É a velha máxima”, disse João Evangelista. “Não existe terra rica que não tenha, também, reserva indígena”, além de outros absurdos que ferem os direitos da minoria. Ele já foi até mesmo processado por racismo pela sua fala em uma palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, no qual disse que “quilombolas não servem nem para procriar”. Ele foi inocentado em 2ª instância.
A jornada de Carol Pires em Eldorado termina na loja de eletrônicos de Guido, irmão mais velho de Bolsonaro. Ele se recusa a gravar entrevista, assim como tem feito com todos os outros jornalistas que entraram em contato. Apesar da falta de cordialidade, Guido engata uma conversa com a repórter e se mostra irritado com o assédio das pessoas, que visitam a sua loja apenas para tirar fotos. Isso porque a semelhança com o irmão é grande, não só na aparência, mas na fala também, cheia de anedotas e piadas que não têm absolutamente nenhuma ligação entre si. No dia seguinte, convida Carol Pires para tomar um café na casa dele, e ela aproveita e pede por vídeos caseiros da família. Guido diz que jogou todas as gravações no rio, não por estar chateado com o irmão, mas porque já não tinham tanta importância. O único que ainda restava foi enviado para o e-mail da jornalista e registrava a Dona Olinda e o Sr. Percy, os pais de Bolsonaro, assim como os filhos Flávio, Eduardo e Carlos.
Já no fim do podcast, Carol Pires reflete que grande parte das preocupações - e obsessões - de Bolsonaro como presidente são frutos do seu período em Eldorado: “O espírito garimpeiro; a intolerância com as reservas indígenas e quilombolas; o pensamento da família Paiva como símbolo de poder e aliança com a esquerda”, diz ela. Ela ainda percebe que o ódio à esquerda nasce do episódio com o Lamarca, e a tentativa de captura do guerrilheiro pelos militares o impressionaram de tal forma que ele se alistou ao Exército. “No fim, Eldorado Paulista é o mito inicial do pensamento político de Bolsonaro”, conclui a jornalista.
Jair Bolsonaro no Exército. Reprodução: Folha de S. Paulo.
O primeiro episódio de “Retrato Narrado” é forte, contundente, e mostra, desde as origens, todas as facetas de Bolsonaro, desde o amigo pescador até o eugenista anti-quilombos. A série conta com mais cinco episódios e nos faz refletir o quão absurdo ainda pode ficar a situação do Brasil. É diferente de qualquer outro perfil já feito: é mais profundo, íntimo e te faz embarcar na história, quase como se estivesse vendo com os próprios olhos - ou melhor, ouvindo com os próprios ouvidos. É uma aula de apuração e storytelling, e é quase uma obrigação de qualquer aspirante a jornalista aprender com o programa.
Para Carol Pires, o passado foi essencial para entender o presente. Retomar os anos da infância e adolescência de Bolsonaro na cidade paulista nos ajuda a compreender o início da sua jornada até o Palácio da Alvorada, além de todos os absurdos ditos e feitos durante este mandato. “Eldorado era, para ele, o Brasil. E quando se tornasse presidente, Bolsonaro governaria o Brasil como se o país fosse uma grande Eldorado”, finaliza a jornalista. Em outras palavras, Bolsonaro governaria o Brasil como o menino de farda, com uma arma na mão e o ódio pela esquerda no peito.
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