Com uma exemplar apuração, profissionais competentes, textos, imagens e arte criteriosamente escolhidos, a equipe de jornalismo do Rio, da Rede Globo, expôs funcionários públicos que tentavam, perversamente, ferir a liberdade do cidadão e da imprensa
Larissa Carvalho

Reprodução/Carlos Latuff 2020
Falta de equipamentos, de leitos e de profissionais. Atendimento e estrutura precários. Anos esperando uma cirurgia. Medicamentos escassos. Pacientes nos corredores. Vacinas em falta. Desesperança. Dor. Luto. Não é difícil condensar em palavras e frases a realidade cruel, desastrosa e desumana do sistema de saúde pública da capital do Rio de Janeiro. Assim, diariamente, vidas se vão de modo silencioso nos hospitais cariocas, enquanto o prefeito tenta calar a voz de quem ainda é vivo o suficiente para lutar por uma saúde digna.
Em meio a esse caos que fere um direito constitucional, eis que surge a imprensa com seu poder social de denúncia, pronta para munir o povo de informação. Foi por meio de um jornalismo sério, comprometido com o cidadão do Rio, que a equipe do RJ TV produziu uma reportagem para tornar pública a postura antiética e inconstitucional do prefeito Marcelo Crivella, o qual reuniu verdadeiros Guardiões cujo trabalho é muito simples: cercear a liberdade de imprensa e, mais do que isso, a voz do cidadão.
A matéria, feita por Chinima Campos, André Maciel, Diego Alanis, Sabrina Oliveira e Paulo Renato Soares, chama atenção antes mesmo de começar de fato. O texto de cabeça lido pelos apresentadores Flávio Fachel e Silvana Ramiro é enfocado de maneira a atrair o olhar do telespectador, uma vez que a reportagem, apresentada no Bom Dia Rio, foi a primeira da programação. Assim, era importante fazer com que o público, disperso em um café da manhã, por exemplo, notasse que algo de diferente estava acontecendo na televisão.
A produção conseguiu fazer isso de várias maneiras, a começar pela mudança drástica de ambiente. O Fachel abre o jornal muito otimista e sorridente, de modo receptivo com a audiência, contudo, logo após, muda as expressões faciais seguido por um texto que revela decepção e revolta, acompanhado, também, por mudança no enquadramento da câmera, agora em Close Up. Transformações suficientes para fazer o telespectador parar e olhar para a TV, afinal, é perceptível que algo diferente está acontecendo. O clima do jornal muda completamente e fica o recado a quem assiste: algo muito sério e importante está por vir.
Desse modo, em meio a um jogo de variações no enquadramento das câmeras e com a Silvana assumindo papel protagonista junto ao Fachel, o texto toma posição de destaque e conversa diretamente com o cidadão: “Ah, você chama, você denuncia, você manda mensagem...” Mais uma vez, chamando a atenção de quem assiste, praticamente convocando o telespectador. Os cacos acrescentados também são fundamentais pois atribuem poder emocional ao texto, quase apelativo, o que favorece a conexão com o público. A desumanização do jornalista, tão comum no jornalismo tradicional, é deixada um pouco de lado e dá espaço a um texto carregado de vida e de emoção, que fala diretamente com o cidadão carioca.
Por fim, encerrando as análises da abertura da matéria, é curioso o tempo dedicado aos textos de cabeça, que além de serem fortes e apelativos, são longos. Entre o início do texto até a chamada da matéria, é demandado muito tempo, algo pouco comum nos jornais brasileiros. Porém, isso se mostra mais uma vez estratégico, já que é o timing suficiente para que as pessoas de casa parem o que estão fazendo, percebam que algo incomum está rolando na telinha e se prendam a assistir o que está por vir. Fica um ar de suspense, somado à revolta, como em um filme. É sensacional.
Ao iniciar a reportagem, várias filmagens de jornalistas sendo atrapalhados pelos Guardiões são reveladas, já impactando o telespectador sobre a gravidade da denúncia e ressaltando a eficiência da equipe de fotojornalismo na captura das imagens. Inclusive, com uma muito simbólica do repórter gravando em frente ao hospital e, ao fundo, dois Guardiões vigiando e controlando o trabalho dele. A coragem dos repórteres se estendeu também a Paulo Renato Soares que, ao ser interrompido durante uma entrevista, aguarda, competentemente, o momento certo de interferir e pergunta: “Não pode falar da saúde?”, conseguindo uma resposta que marca toda a reportagem: “Não.”

Reprodução/Reportagem Guardiões do Crivella
Profissionais competentes, sóbrios, com um trabalho de apuração que não abre brechas para dúvidas ou desinformação, visivelmente preparados para lidar com a violência física e verbal originadas pelos servidores públicos – os quais, curiosamente, fazem um desserviço à população. Além dos repórteres e cinegrafistas, a equipe de design também merece destaque, já que informações importantes sobre os guardiões foram didaticamente expostas em artes bem organizadas, o que facilita a compreensão da audiência. Um trabalho conjunto que deve ser contemplado e aplaudido de pé por tamanha coragem, capacitação e maestria.
Com um texto que não deixa lacunas, direto ao ponto e bem articulado às filmagens obtidas, a reportagem se desenrola de maneira impactante a quem assiste. Durante a entrevista com um profissional que havia sido contratado para ser guardião, há recortes honestos e que valorizam e atestam as informações obtidas. Uma fonte importante, necessária, que revela detalhes do esquema e enriquece o material recolhido de apuração. Até a entrada ao vivo durante a reportagem foi crucial para chamar uma informação nova importantíssima, desmascarando uma mentira dita por uma guardiã.
Elementos importantes de uma reportagem foram reunidos na matéria intitulada Guardiões do Crivella. Vários componentes essenciais para uma boa reportagem foram explorados, a começar por toda uma equipe competente, seguida por imagens bem capturadas, texto firme na denúncia e esclarecedor, abertura sensacional pelos apresentadores, entrevistas fundamentais, apuração e artes bem elaboradas, facilitando o entendimento do público. Um trabalho que revela o jornalismo com poder de denúncia e sustentado por seu papel social.
Apesar de toda a competência da reportagem, é preciso enfatizar o quão lamentável é o conteúdo apresentado por ela. Foram cerca de dez minutos bombardeados por um ato criminoso organizado por profissionais do gabinete do prefeito Crivella. Como pode um servidor público eleito pelos cidadãos trair o seu próprio povo? A liberdade de expressão está garantida na Constituição. E a de imprensa também. Enquanto existir jornalismo comprometido com a sociedade, existirá denúncia; e enquanto existir denúncia, cabe a reportagem dos Guardiões do Crivella como um bom exemplar.
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