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O Álbum Branco: por dentro da paranoia

Atualizado: 6 de jul. de 2022

Yasmin Montebello


A partir da ebulição cultural e das intensas mudanças em uma Califórnia de inquietude durante os anos 60 e 70, a jornalista e escritora Joan Didion constrói um mosaico de ensaios para compreender a época. O Álbum Branco (HarperCollins, 2021), originalmente publicado em 1979, traz a perspectiva da autora sobre aqueles anos, juntando informações sobre os acontecimentos com as opiniões de Didion. Essa união reforça a essência de sua escrita como inclinada ao New Journalism.


Joan Didion é uma das pioneiras daquilo que, no Brasil, é conhecido como Jornalismo Literário. Esse gênero é baseado na união entre a escrita jornalística clássica, com todas as regras de um texto que visa a informação, e a escrita literária, com ferramentas como a construção narrativa e a maior abertura a subjetividades como, nesse caso, fluxos de pensamento. Ou seja, apesar de oferecer destaque à informação, agrega a ela uma visão pessoal. Didion se coloca como uma observadora dos fragmentos da história que presencia. Ao passar isso para a escrita, deixa de ser apenas observadora, pois expõe suas opiniões sobre os eventos e se posiciona como parte da história.



















Imagens: Reprodução/HarperCollins


O livro é dividido em cinco capítulos, cada um com uma série de ensaios. O primeiro capítulo, homônimo ao livro, começa com o trecho “Contamos histórias para poder viver”. Apresenta Joan Didion e deixa claro como o estado da narradora irá moldar a visão que tem sobre a paranoia — como chama aquele período. Estavam todos sempre no olho do furacão, diante de perigos iminentes reverberando por todos os lugares: nos jornais, na TV, nas conversas casuais. E, com as crescentes de crimes transformados em espetáculos televisionados, havia um sentido comum de alerta ainda maior. Um exemplo citado pela autora é o conhecido caso dos assassinatos cometidos por Charles Manson, também na Califórnia. Qualquer um poderia ser o criminoso e qualquer um poderia ser a vítima.


“Ao longo daqueles anos, eu estava sempre anotando números de placas de furgões, veículos dando a volta no quarteirão, estacionados do outro lado da rua, ou em ponto morto no cruzamento. Colocava esses números na gaveta de um toucador onde poderiam ser encontrados pela polícia quando o momento chegasse. Nunca duvidei de que o momento ia chegar, pelo menos não nos lugares inacessíveis da mente (...)” (p. 20).

O livro traz muito da cultura musical da época ao relatar situações como assistir a um ensaio da banda The Doors e ir a uma festa com Janis Joplin como uma das convidadas — ambos fazem parte de um consumo atemporal, com fama atual. Didion também entrevista o ativista político e membro do Partido dos Panteras Negras Huey Newton quando estava preso em 1967. No capítulo três, volta ao tópico ao aprofundar o olhar no movimento feminismo em evidência e as próprias considerações sobre as pautas.


Em A república da Califórnia, há sete ensaios. Dentre eles, Água Benta se destaca por abordar a distribuição de água na Califórnia e a política de Ronald Reagan quando ainda era governador do estado. Ao comentar a atuação das igrejas pentecostais em Notas para uma Dreampolitik, critica a expansão religiosa facilitada nos interiores pois tais espaços remotos captam uma versão superficial de influência das metrópoles, que vivem de informações e hisperestímulos.


Marcha pelos 50 anos do Movimento Sufragista (Imagem: John Olson/The LIFE Picture Collection)


O capítulo três, Mulheres, foca na perspectiva de Joan sobre o movimento feminista, que pode soar controversa pois ela não se mostra totalmente a favor e critica com contundência algumas das principais pautas em eviência na época. Ainda, passa pelas histórias da escritora Doris Lessing e da pintora Georgia O'Keeffe, ressaltando as incoerências que imprimiam em sua arte frente às posturas políticas alinhadas com os ideais feministas propagados no momento.


Temporadas, quarto capítulo, é o mais pessoal. Didion se apresenta como pessoa e jornalista e se mostra uma narradora nada imparcial, longe de ser apenas uma voz flutuante e automatizada contando a história.


“Quero que entenda que está lendo uma mulher que, já faz algum tempo, se sente radicalmente apartada da maioria das ideias que parece interessar a outras pessoas. Está lendo uma mulher que, em algum momento do percurso, extraviou a pouca fé que veio a ter no contrato social, no princípio melhorativo, no imenso padrão do esforço humano” (p. 152).

O livro segue entre a produção de filmes hollywoodianos, as férias no Havaí, os artigos escritos para os jornais, a popularização dos shopping centers — hoje banais, de tão comuns, mas, na época, uma novidade e tanto. E finaliza com Acordando depois dos anos 1960, uma sequência de nomes e histórias que não poderiam casar melhor com o que quer dizer.


O Álbum Branco não apenas descreve com precisão os tempos desconcertantes, mas oferece um vislumbre de como era estar dentro daquilo; como foi continuar a vida estando no centro da paranoia. “Não dava para escrever uma narrativa coesa sobre essa época, porque essa época não era coesa. Portanto, ela encontrou esse caminho, que foi fazer um registro verbal do momento”, disse Hilton Als, escritor e crítico literário, ao documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold (2017, dir. Griffin Dunne), sobre a vida e a obra da jornalista. O retrato da Califórnia ao longo dos anos de 1960 e 1970, apesar de soar bastante local, é capaz de gerar enorme identificação com múltiplas culturas espalhadas pelo globo, especialmente a partir das semelhanças na música, no medo, na política e nos pactos sociais. Afinal, ao que parece, há um pouco de paranoia em cada canto do mundo.


“Suponho que tudo mudou e nada mudou” (p. 171).




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