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Era uma vez um crime: um olhar humanizado sobre a mulher que esquartejou o marido

Isabela Viana


Sob o olhar sensível da diretora Eliza Capai, Elize Matsunaga: Era uma vez um crime revela os detalhes mais obscuros do crime que chocou o Brasil. A série documental da Netflix de apenas quatro episódios conta com a entrevista inédita da própria Elize, que assassinou e esquartejou o marido, Marcos Matsunaga, no dia 20 de maio de 2012.


(Imagem: Divulgação/Netflix)



O caso chega a ser tão inusitado que, mesmo após tantos anos, ainda encontramos o nome de Elize em alguma manchete que promete revelar algum novo segredo sobre o caso ou onde pode estar associado ao de outras assassinas famosas no Brasil, como a da própria Suzane Von Richthonfen, da qual me permito poupar apresentações. Mas por que esse crime ficou tão famoso? Primeiro, Marcos Kitano Matsunaga era o herdeiro da empresa Yoki (sim, YOKI), e muito se especulou sobre um possível golpe da Matsunaga. Segundo, a brutalidade do crime foi absurda aos olhos de muita gente. Entretanto, o documentário não retrata o monstro que, vindo de uma série criminológica, todos esperavam, mas uma mulher que pensa, fala e toma decisões ruins como todos nós, além de expor um dualismo gigantesco para embrulhar nossas cabeças: quem é Elize Matsunaga, uma vítima de um marido abusivo ou uma pessoa que não se contentava com a “vida de princesa” que levava?


“Eu sei que tem pessoas que compreendem o que aconteceu e sei que tem pessoas que me abominam. Sei que tem pessoas que me julgam. E tudo bem, é a opinião delas”, disse Elize Matsunaga durante a entrevista para a série da Netflix.

É a riqueza dos detalhes, a tranquilidade de Elize narrando a sua própria história e as reviravoltas que nos fazem ficar vidrados em cada episódio. Porém, a diretora não se prendeu unicamente a isso, também vemos o ponto de vista de familiares, amigos, investigadores e jornalistas que acompanharam o caso desde o inicio, imagine pegar um furo desse. Também é nos primeiros suspiros da série que percebemos algo que marcou não só a investigação, como a vida da própria Matsunaga, o machismo. Na fala da maioria dos entrevistados, principalmente na dos investigadores e amigos próximos do Marcos, fica claro que eles já haviam criado um enredo imutável sobre a vida da mulher antes mesmo da sentença ser deliberada. Para eles, o caso dela se tratava de uma versão ingrata do filme Uma linda mulher, que parece ser algum tipo de fetiche nutrido por esses homens.



(Imagem: Elize Matsunaga/reprodução)



Durante a entrevista, a Elize fala sobre o seu estranho casamento com Marcos. Ela conta ao telespectador sobre as viagens que fizeram, como se conheceram, o que gostavam de fazer e os piores momentos do matrimônio. Porém, a parte mais interessante é quando ela revela a paixão pela caça que os dois compartilhavam, a coleção de armas que possuíam no apartamento e certa inclinação a bichos exóticos. Nesse momento da entrevista, vemos uma gravação perturbadora que o casal fez alimentando uma cobra que haviam comprado. É uma das cenas mais impactantes, em que você pausa a televisão e reflete bastante sobre a história sendo contada. A própria Matsunaga conta que o seu ex-marido se impressionava bastante com ela, pois “não era como as outras mulheres que ele havia conhecido”. E eles viviam presos nesse mundo que haviam criado para si.


Apesar de parecerem perfeitos um para o outro, o relacionamento dos dois era muito conturbado, principalmente por causa das traições de Marcos. E Elize fala que sempre que tentava colocar um fim na relação, o marido ameaçava mandá-la para um manicômio e tirar a presença da filha da vida dela, como uma forma explícita de abuso psicológico. No dia do crime, o famoso dia “D”, a briga foi inevitável, ela havia descoberto outro caso.


“Eu não esperava isso dele, eu fiquei com medo. Eu queria que ele parasse. Ele me viu armada e eu apontei a arma pra ele. Ele estava me xingando, ele não parou, continuou andando. Ficou surpreso [quando me viu com a arma] e começou a rir, falou que eu não tinha coragem de atirar. Falou que eu era uma puta, para eu ir embora com minha família de bosta para o Paraná e deixar minha filha aqui. Quando falou que eu não ia mais ver minha filha eu não aguentei. E eu disparei. Na hora eu estava com o coração na garganta”, fala de Elize sobre o dia que assassinou o marido.

Agora, por que ela esquartejou Marcos? Porque para ocultar o crime, ela precisava tirá-lo do apartamento, então teve a infeliz ideia de esquartejá-lo. Esse detalhe mórbido foi abordado de forma tão lógica na série que parecia óbvio. Não havia outra escapatória para Elize. Narrando o esquartejamento com todos os detalhes, percebemos que foi um momento de choque. Ela agiu como uma caçadora, tinha a frieza e o conhecimento técnico para o procedimento, então acabou o fazendo. Os investigadores não deixaram de questionar a Matsunaga e acreditavam que ela não tinha condições físicas para ter agido sozinha. Na entrevista, ela rebate essa dúvida com veemência. “Se eu não tivesse feito isso, talvez eu olhasse pra mim, eu falava: ‘Não, você não foi capaz de fazer isso. Não foi você’. Mas foi. Fui eu que fiz, fui eu”, revelou.



(Imagem: Elize e Marcos Matsunaga/Reprodução)



Durante o julgamento é que conhecemos com mais detalhes a vida de Elize antes do Marcos, e é também quando os dois opostos, a defesa e a acusação, entram em um combate entre si, usando seu passado como artilharia para criminalizá-la ou justificá-la. Somos apresentados a uma mulher que já trabalhou como acompanhante de luxo, forma pela qual conheceu Marcos, a uma jovem que sonhava deixar a cidade pequena em que vivia, a uma adolescente que sofreu abuso sexual do padrasto e a uma mãe que, desesperada para contar a sua versão da história para a filha, concedeu pela primeira vez uma entrevista para o público. São esses enredos, não tratados de maneira cronológica, que causam um impacto ainda maior no telespectador, humanizando uma protagonista que já sofreu e cometeu atos terríveis.


Mesmo que a série documental não pareça ser imparcial sobre o caso - o que eu pessoalmente não considero um problema -, ela fomenta críticas importantes para a nossa sociedade. Pouco se é questionado, ainda mais dentro de um sistema judiciário, sobre o porquê de uma mulher ser demonizada por seus crimes enquanto que os homens são inocentados por muito mais. E nesse caso em específico, vemos claramente o esforço sobre-humano dos investigadores e do próprio juiz em condenar a Elize com a maior pena possível não só pelo delito que ela cometeu, como também pelo seu passado e condições em que conheceu o marido. A própria Matsunaga levanta esse questionamento. E se fosse o Marcos em seu lugar, esse caso tomaria as mesmas proporções?


Por essas e outras que eu recomendo “Elize Matsunaga: Era uma vez um crime” não apenas para os amantes da criminologia brasileira, como também para os futuros comunicadores. Nesse documentário vemos o trabalho árduo de jornalistas para colher os detalhes sobre a vida de Elize: seja confirmando alguns dos fatos narrados pela própria, seja pela apuração fantástica e olhar aguçado do repórter que soube de imediato que o cadáver do Marcos, antes da própria perícia saber que era ele, não se tratava de uma pessoa comum. Além disso, com essa visão sensível e humanizada sobre uma pessoa, quantos outros casos poderíamos colocar em pauta sob a perspectiva do próprio autor do crime? Não para a defesa de seus delitos, mas para compreendermos melhor o contexto que os fizeram cometê-los e para repensarmos criticamente o sistema judiciário em que estamos inseridos.



Se interessou? Assista o documentário completo na Netflix: https://www.netflix.com/br/title/81043160

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