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Foto do escritorPitacos

Da tragédia à esperança, “O sal da Terra” emociona

Sophia Lyrio Hermanny


A fotografia é uma arte que permite expressar além do olhar do autor, capaz de capturar e eternizar uma realidade. Foi a partir dessa concepção que Sebastião Salgado se sujeitou ao papel de ‘testemunha da condição humana’, nas suas palavras, e traçou carreira como fotógrafo social. Mais tarde, retratou também a natureza em Gênesis, sua ‘carta de amor para o planeta’. Quem nunca teve contato com o trabalho de Salgado talvez se surpreenda com o estilo: imagens cruas, monocromáticas e com um recorrente ar de fatalidade - no sentido mais amplo da palavra, algo que não se pode evitar. Além disso, os temas abordados por ele corroboram o forte impacto visual: miséria, violência, refugiados de guerras e outras nuances dos horrores sociais do mundo contemporâneo.

(Imagem: Reprodução)


Wim Wenders, cineasta alemão e presidente da Academia de Cinema Europeu, dirigiu mais uma obra de sucesso com “O sal da Terra”. O documentário, codirigido pelo filho Juliano Salgado, desenha a trajetória de Sebastião Salgado com um toque especial de pessoalidade. Apesar de contar com alguns depoimentos de quem esteve presente em seu percurso, o longa é narrado majoritariamente pelo fotógrafo, que compartilha suas vivências durante a produção de seu trabalho. Nesse sentido, confere-se um riquíssimo repertório jornalístico ao telespectador, além de proporcionar uma face pessoal do autor atraente aos seus admiradores.


A sensibilização surge de diferentes aspectos durante os 110 minutos da produção. Wenders faz uma retomada da juventude de Salgado, desde sua emigração para Paris no período ditatorial brasileiro e sua próspera formação como economista, abandonada em virtude da descoberta de um novo dom. Usufruindo de registros jamais publicados, incluindo a primeira imagem capturada pelo fotógrafo, é com esse tom de aproximação entre espectador e protagonista que o documentário se inicia, passando a revelar as emoções e observações por trás de cada clique da câmera. O primeiro trabalho abordado retratou os trabalhadores de Serra Pelada, regidos apenas pela esperança de uma descoberta dourada que mudaria suas vidas. Salgado relatou que os trabalhadores subiam as escadas das minas de 50 a 60 vezes por dia, depoimento cuja essência é explicitada em suas fotos, que chocam pela verossimilhança. É uma versão inédita e muito próxima de um importante momento histórico brasileiro, indispensável para os que buscam agregar mais conhecimentos e apurar seus olhares.

(Imagem: Reprodução/Sebastião Salgado)


Outro aspecto passível de análise é a fotografia da morte, fria e crua. Sebastião Salgado fotografou o Nordeste, “região do mundo em que a morte e a vida estão muito próximas”, nas palavras do autor. Ele narrou que, quando uma criança não batizada morre de olhos abertos, eles são deixados assim para que ela possa encontrar seu caminho. O fotógrafo transmite o que vê, sem temer o retrato mórbido da pequena nordestina de destino interrompido. É esse o diferencial de sua obra. Seguindo o rastro da miséria, o seu próximo trabalho foi em Sahel, na África. O autor revelou sua intenção de reportar ao mundo o martírio decorrente da desigualdade, o que expressa o caráter de denúncia intrínseco a essa produção.


Diferente do que as críticas apontam, a obra de Salgado não consiste em ‘estetização da miséria’ uma vez que as imagens extrapolam a questão estética, assumindo a função de comunicar uma realidade. Os olhares vazios, os corpos desenhados pelos ossos e a imposta naturalização da perda são elementos capturados pelas fotografias que eternizam o sofrimento desse povo. A mensagem de Sebastião Salgado se destaca pelo olhar de um real que não tem escapatória, sem margem para eufemismos. É o retrato da miséria e da morte sem pudor, o retrato de uma verdade totalmente negligenciada pela sociedade ocidental. E a sua narrativa corrobora essa ideia, ratificando o caráter certeiro e bem construído do documentário. Nesse sentido, é um material imprescindível principalmente para jornalistas em formação que desejam ampliar suas noções de mundo por meio de abordagens fiéis à realidade.

(Imagem: scielo.br/Sebastião Salgado)


O fotógrafo também realizou mais alguns percursos hostis para consolidar outros projetos, que costumavam ser idealizados por Leia, sua esposa. Em um deles, Salgado acompanhou refugiados de guerra durante perturbadoras viagens. Ele relatou que adoeceu fisicamente, e chegou a perder a fé na humanidade. “Os humanos são um animal terrível. Nossa história de guerras é uma história sem fim”, depôs o autor, num discurso complementar ao retrato do genocídio e da violência. Chama atenção a arquitetura de Wenders permitir que as emoções sejam transmitidas com maestria ao decorrer do longa, fazendo com que o telespectador seja totalmente envolvido pelos eventos abordados, compartilhando tanto a dor dos retratados como a do fotógrafo.


Além disso, a aproximação em relação a Salgado se dá a partir de outras narrativas, como a do próprio diretor, que inicia o documentário se colocando como grande admirador de seu trabalho. A narrativa de Juliano, como filho que trata da ausência do pai e, mais tarde, o acompanha em suas aventuras para descobrir o seu lado profissional, apresenta uma perspectiva diferente das já abordadas, também muito importante para a construção das várias facetas do homem Sebastião. Já sobre o aspecto estético, o fotógrafo é retratado majoritariamente em preto e branco, numa analogia a sua produção que, mesmo óbvia, não cai mal. A escolha da disposição cronológica da obra de Salgado é outro fator interessante, que promove um melhor entendimento sobre os rumos que ele decide seguir em seu trabalho e com base em quê o faz. Em suma, o documentário é harmônico em múltiplos aspectos e oferece ao telespectador uma experiência muito proveitosa, apesar do teor forte e intragável das temáticas que o regem.


Gênesis, a última obra abordada, é narrada com tom de reconciliação entre o fotógrafo e o mundo, pelo qual ele se desencantou em suas andanças. Nessa perspectiva, Salgado e Leia organizaram um projeto que visava retratar as maiores belezas da natureza, seguindo os passos de Darwin ao começar pelas Ilhas de Galápagos. A obra revela que o talento do autor não se restringe ao perfil social e, portanto, o documentário quebra todas as expectativas ao tocar por uma sensibilidade que passa apenas pela beleza, e não pela dor. É um final satisfatório, em que o telespectador pode, finalmente, respirar fundo e só apreciar a narrativa suave e as belas imagens.

(Imagem: Reprodução/Sebastião Salgado)


Em síntese, o documentário surpreende pela riqueza de conteúdo, assim como pela grande carga emocional que permeia toda a película. O choque de realidade proporcionado pode ser bem conduzido pelo telespectador, que foi familiarizado com temáticas delicadas e negligenciadas, e agora está mais próximo de ver o mundo como ele é. De fato, são 110 minutos de uma experiência inesquecível. A escolha de fechamento caiu muito bem, em sintonia com a ideia de Gênesis. Foi retomado o depoimento do pai de Salgado, que revelou ter perdido a terra em que criou seus filhos para a seca. Leia, portanto, arquitetou o reflorestamento da Mata Atlântica nessa área e promoveu o que, hoje, é o Instituto Terra, uma reserva ambiental. Apesar de toda a dor, a mensagem final é: pode haver esperança.


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