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Um fim de mundo a cada mês

Algumas reflexões sobre o alarmismo científico na imprensa não especializada


Felipe Gallo


Comparação comum em matérias alarmistas (Imagem: Spacereference.org)


Quantas vezes você já leu uma notícia com o título "Asteroide gigante passará próximo da Terra, avisa NASA”? Numa sociedade na qual o acesso à educação de qualidade é baixíssimo e num mundo onde a ciência é cada vez mais posta em dúvida – quando não ignorada –, como verificamos na pandemia, o jornalismo científico se torna cada vez mais importante. Entretanto, o que acontece quando um jornalismo não qualificado assume esse papel?


Alarmismo é definido pelo dicionário da Oxford Languages como a "disseminação de boatos ou notícias que provocam inquietação, medo e confusão". Uma imprensa alarmista, por consequência, está muito longe do que poderia se considerar um jornalismo bem feito. Ainda assim, o alarme é por muitas vezes o que faz a roda girar: alarme gera cliques, que geram engajamento e que, por sua vez, geram a disseminação daquele conteúdo, o reconhecimento do veículo e, o mais importante, dinheiro. Do ponto de vista financeiro, um alarmismo "aqui e acolá" se torna interessante.


Esse tipo de notícia tem um objetivo claro: ser uma isca de cliques ao unir catástrofes inesperadas com o sempre muito fascinante e misterioso Universo. Assuntos como buracos negros se aproximando da Terra e, principalmente, asteroides enormes vindo em nossa direção ganharam o noticiário nos dias 23 de maio de 2022, 18 de janeiro de 2022, 21 de março de 2021, 30 de novembro de 2021, 11 de abril de 2019, 9 de fevereiro de 2018 e 15 de fevereiro de 2013. Os conteúdos foram publicados em jornais ou portais de relevância: Uol, g1, CNN Brasil, BBC e Terra. Os títulos afirmavam: a “Cientistas encontram buracos negros ‘perto’ da Terra e em rota de colisão”, “Asteroide com 1,8 km de diâmetro passará próximo à Terra” e, dentre outros, “Asteroide gigante vai passar perto da Terra no começo da noite desta terça, diz Nasa”. A lista é extensa e com múltiplas notícias num mesmo ano, mas o fator comum entre todas elas é que foram dadas como um acontecimento surpreendente e preocupante – sendo que tais acontecimentos são comuns.


Conversando com qualquer astrônomo, rapidamente conseguimos descobrir primeiramente que não, a NASA não afirmou – e quase nunca afirma – que “um asteroide maior que o Empire State está vindo na direção da Terra”. Esse é só um dado público em meio a diversos outros. Em segundo lugar, que não há surpresas ou espanto: os astrônomos identificam com meses de antecedência os corpos celestes em rota de aproximação com a Terra. Por fim, que a tal aproximação “perigosa” significa o asteroide passar a uma distância que ultrapassa os 4 milhões de quilômetros. É como se você, leitor, estivesse andando pela Urca e se preocupasse em ser atropelado por um ônibus que está em Tóquio. Na realidade, seria necessário o dobro dessa distância para se manter a escala, então, não há qualquer tipo de risco.


A responsabilidade social, preocupação permanente do jornalismo, não pode ser posta de lado quando aborda assuntos de conhecimento especializado. Pelo contrário, o jornalismo assume um papel ainda mais relevante ao transmitir essas informações para o público geral, uma vez que este não possui formação para questionar tais pautas. O que se verifica, muitas vezes, é um vasto alarmismo científico. Ganhamos um fim do mundo a cada mês.


A busca pela informação técnica, educacional e científica deve ser feita com seriedade, valorizando o trabalho de jornalistas que conhecem o tema e se especializaram nele. A imprensa, de modo geral, tem desempenhado um papel fundamental na comunicação entre ciência e sociedade nos últimos anos. Principalmente quando existe, reconhecidamente, uma falha por parte dos detentores de conhecimento científico em sua comunicação direta com a sociedade.


Após todo o aprendizado trazido com a explosão de desinformação, em especial durante a pandemia, e o relevante papel do jornalismo nos tempos sombrios recentes, é de se desejar que tal avanço seja mantido na abordagem dos demais tópicos científicos. Uma comunicação científica sem alarmismo é mais que uma necessidade, é um dever a ser cumprido todos os dias pelo jornalismo, sem o constante alarme de ameaças cósmicas inexistentes.



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