As marcas eternas de um crime bárbaro, até hoje sem solução
Estela Cezário
Para as famílias das vítimas do incêndio na boate Kiss em Santa Maria, todo o dia é 27 de janeiro de 2013. O evento que acordou a cidade com tamanha melancolia num domingo ensolarado, contradizendo com a atmosfera de luto, foi o tema do livro da jornalista Daniela Arbex, Todo dia a mesma noite (Intrínseca, 2018), em mais uma de suas obras memoráveis.
(Capa do livro / Imagem: Reprodução)
Os moradores da cidade com pouco mais de 200 mil habitantes no interior do estado do Rio Grande do Sul jamais imaginariam que seu verão atipicamente quente seria marcado por uma tragédia de conhecimento mundial. Santa Maria, apesar da conotação de cidade pacata, abriga um dos maiores complexos universitários do país em sua região e é palco de uma vida noturna agitada. Em uma dessas noites, o acionamento de um artefato pirotécnico dentro da boate resultaria na morte de 242 pessoas e mais 636 feridos.
A escritora e jornalista mineira Daniela Arbex já ganhou mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, incluindo o Prêmio Jabuti nos anos de 2014 e de 2016. Ela também é autora de grandes obras da literatura brasileira como Cova 312 e seu livro de estréia Holocausto Brasileiro, que foi adaptado para o audiovisual através da plataforma de streaming HBO, estando disponível para mais de 40 países.
Cinco anos após a catástrofe, a jornalista lançou mais um livro-reportagem repleto de emoções depois de pesquisas, inúmeras viagens ao Rio Grande do Sul, leitura de inquéritos e mais de 100 entrevistas com pais, mães, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas e testemunhas que vivenciaram o ocorrido.
O livro reúne relatos dos personagens presentes naquela noite de horror e, dentre os mais chocantes, destaca-se o de Liliane Espinosa Duarte (48), enfermeira e capitã de sobreaviso do Hospital da Brigada Militar de Santa Maria. Com riqueza de detalhes, a autora descreve os passos da profissional durante a madrugada. Liliane, ao chegar ao local para resgatar as vítimas, se deparou com muitos jovens já sem vida empilhados no chão. Sua narrativa conta que, por tratar-se de um incêndio, as pessoas continuavam com a pele quente e avermelhada, dando-lhes a sensação de que estavam apenas dormindo.
Mesmo o episódio tendo se passado nas primeiras horas da manhã de domingo, por conta de sua gravidade a notícia alcançou rapidamente os moradores de Santa Maria e região, o que gerou um grande alvoroço nas ruas próximas à boate e aos hospitais. O que mais chamou atenção da enfermeira, no entanto, foi o som dos celulares das vítimas que tocavam quase todos ao mesmo tempo. Os visores revelavam textos similares como “mamãe”, “papai”, “vó”, “casa”.
(Fachada da boate anos após o incêndio / Imagem: Reprodução)
Posteriormente, Daniela descreve com mais detalhes sobre o momento do incidente e a gravidade dos pacientes que chegavam aos hospitais. Naquele sábado a boate estava cheia, cerca de mil pessoas na plateia. Mal podia-se ver o piso ou deixar de se espremer entre as pessoas para ir ao banheiro, por exemplo. Por volta das 3h da manhã, a plateia passou a perceber uma movimentação no palco: o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus, se preparava com luvas para acionar um sinalizador. Quando o fogo de artifício foi aceso, sua faísca atingiu a esponja que fazia o isolamento acústico da casa noturna e se alastrou rapidamente por grande parte do teto, paredes e palco da boate. Além do estabelecimento não ter sinalização adequada para casos de emergência, uma fumaça preta tomou conta do local em poucos segundos, o que dificultava ainda mais a saída das pessoas. Instantes após o início do incêndio a energia elétrica caiu. Muitos foram pisoteados e esmagados em meio a multidão. A maioria perdeu os sentidos, asfixiada pela fumaça.
Assim que o episódio aconteceu, os Centros de Terapia Intensiva da cidade ficaram lotados. De imediato, os médicos e enfermeiros notaram que o gás inalado pelas pessoas continuava a fazer efeito no organismo mesmo horas após a exposição, já que os quadros se agravavam rapidamente. Desta maneira, após a coleta de materiais de dentro da boate e dos corpos das vítimas, foi constatada a presença do gás cianeto de natureza extremamente tóxica.
A queima do poliuretano, uma espuma comprada e instalada irregularmente dentro da boate para fazer o isolamento acústico, somada ao monóxido de carbono das chamas gerou uma fumaça assustadoramente letal. Segundo especialistas, na prática, os frequentadores da Kiss morreram com o mesmo gás usado para exterminar os judeus nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
O livro enfatiza, ainda, como era a relação das famílias com as vítimas do incêndio. Na maioria das vezes, nota-se que os pais se realizavam através das conquistas dos jovens. Muitos deles vinham de famílias humildes, nas quais os pais não tinham um diploma universitário. Sendo assim, seus filhos foram os primeiros da família a entrar em uma instituição de ensino superior. Além disso, a publicação evidencia os resultados provocados pelo episódio. Alguns pais adoeceram após a morte de seus filhos e acabaram morrendo anos depois. Outros tiveram o casamento rompido após anos de união. Também houve alguns casos de suicídio entre os familiares. Além disso, é possível observar durante a leitura o estresse pós-traumático dos profissionais da saúde depois da fatídica noite.
Informações que surgiram a partir das investigações policiais foram somadas ao conteúdo do livro. Inaugurada no ano de 2009, em nenhum dos meses de funcionamento a boate abriu suas portas dentro de todas as exigências legais, inclusive a dos alvarás. Marcelo de Jesus dos Santos é o principal responsável pelo incêndio, já que o sinalizador foi acionado por ele. Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da boate, também são acusados pelo crime que levou a vida de quase 300 pessoas, uma vez que, como responsáveis pelo espaço, não atendiam às exigências da prefeitura. Oito anos depois, os réus seguem em liberdade condicional sem julgamento.
A obra em si traz um enredo tocante, aflitivo e doloroso devido à riqueza de detalhes que lhe é atribuída. Apesar de ser um livro denso e repleto de histórias difíceis de serem ruminadas, Todo dia a mesma noite te prende até a última página. Ao contar a história, a jornalista parece encarnar os fatos narrados a ela de maneira ímpar, nos emprestando os olhos, ouvidos e a dor dos familiares inseridos naquele contexto. Sua escrita coloca o leitor diante do pavor vivido naquela madrugada de forma inteligente e magistral.
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