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Os desequilíbrios de Blackwell

Atualizado: 16 de nov.

A jornalista do século 19 que se infiltrou num manicômio feminino para denunciar os abusos da instituição



Capa de Dez dias no manicômio (Imagem:

Reprodução Editora Meia Azul)

Elizabeth Cochram Seaman, conhecida pelo pseudônimo de Nellie Bly foi uma jornalista e escritora estadunidense. Considerada uma pioneira do jornalismo investigativo, algumas de suas reportagens foram publicadas como livros, a exemplo de Dez dias no manicômio e A Volta ao Mundo em 72 dias. Muitas vezes envolvida em grandes investigações, era uma repórter com um estilo único e bastante inovador para o seu tempo. Afinal, as jornalistas mulheres eram subestimadas nas redações, ocupando, na maior parte dos casos, cargos em editorias consideradas “femininas”, como Moda, Beleza e Culinária.


Uma de suas principais obras é Dez dias no manicômio. Nesse livro-reportagem, Nellie se disfarça de paciente do “Asilo de Mulheres Lunáticas”, o primeiro manicômio das Américas, inaugurado na ilha Blackwell, em Nova York. Após 10 dias internada, ela consegue identificar os abusos de uma instituição que reforçava estigmas de saúde mental e tratava seus pacientes de forma injusta e desumana, por meio de castigos físicos e violência psicológica, por exemplo. A partir dessa reportagem, a autora sai em defesa dos direitos básicos dos pacientes manicomiais e também das mulheres, que eram internadas e tidas como “loucas” com frequência, muitas vezes sem nenhuma prova de que tinham algum transtorno mental.


“ — O que estão fazendo comigo? Eu estou com frio, muito frio. Por que não posso ficar na cama ou usar xale? — e então ela se levantava e se esforçava para tatear o caminho para sair da sala. Às vezes, as atendentes a puxavam de volta para o banco e, outras vezes, a deixavam andar e riam sem coração quando se chocava contra a mesa ou na beirada dos bancos. Certa vez ela disse que os sapatos pesados que a caridade fornecia machucavam seus pés e os tirou. As enfermeiras fizeram duas pacientes colocá-los novamente, e quando ela fez isso várias vezes, e lutou contra colocá-los à força, contei sete pessoas ao mesmo tempo tentando calçar os sapatos nela. Em seguida, a velha mulher tentou deitar-se no banco, mas a puxaram para cima de novo. Era de cortar o coração ouvi-la chorar: — Por favor, me deem um travesseiro e uma coberta, estou com tanto frio! Logo vi a senhorita Grupe sentar-se sobre ela e passar as mãos frias pelo rosto da mulher e no pescoço, por dentro do vestido. Ela ria selvagemente com os gritos da velha, assim como as outras enfermeiras, e repetia seus movimentos cruéis. Naquele dia, a velha foi levada para outra ala.”


Vista do manicômio da ilha de Blackwell (Imagem: Reprodução Terra)


No livro-reportagem Dez dias no manicômio, Nellie Bly não utiliza somente técnicas jornalísticas, mas também recursos literários em sua escrita, como a observação atenta, o incentivo ao exercício da empatia e a descrição minuciosa de espaços e personagens. Essa característica revela o quão inovadora Nellie podia ser em suas reportagens, tendo em vista que o “jornalismo literário”, estilo que une o jornalismo à literatura, se popularizou nos Estados Unidos em 1960, 72 anos depois da escrita do livro. A escolha por usar esses recursos foi muito benéfica para a narração da história, uma vez que promoveu um olhar sensível e humanizado sobre o tema, o que se torna mais nítido ainda após a publicação do livro, com a repercussão da obra.


Nellie Bly teve um alcance grande com Dez dias no manicômio. Afinal, o livro denuncia as injustiças e os crimes cometidos contra os considerados “loucos”, uma crítica polêmica para aquela época, na qual o preconceito e a violência contra essa parcela da população eram muito presentes na sociedade. Isso fez com que Nellie tenha sido uma das pioneiras no combate a essa lógica manicomial cruel, que servia a um plano político de exclusão social e era legitimada pelos valores higienistas daquela cultura. Os resultados de suas críticas são evidenciados ao final do livro, quando a autora confessa seu alívio em saber que, após a publicação da reportagem, o comitê de orçamento destinou um milhão de dólares a mais por ano em benefício ao tratamento dos pacientes dos manicômios.


O método de investigação adotado por Nellie Bly também é muito interessante. A jornalista inaugurou o “stunt journalism” ou o “jornalismo de disfarce”, que foi exercido sobretudo por jornalistas mulheres, as chamadas “stunt girls”. Nesse estilo de jornalismo, o repórter vivencia a temática de sua matéria, por um certo período de tempo, com o objetivo de usar essa experiência pessoal para narrar a história com mais propriedade. Além disso, é curioso perceber como a própria autora não está isenta de reproduzir alguns estigmas e apresentar certas contradições em sua narrativa, o que pode ser observado na cena de seu julgamento:


“Pobre criança — disse o juíz Duffy — , ela está bem vestida e é uma dama. Seu inglês é perfeito, e eu aposto que é uma boa garota. Tenho certeza de que ela é a queridinha de alguém. […] — Quero dizer, ela é a queridinha de alguma mãe — emendou o juíz apressadamente — Tenho certeza de que alguém está procurando por ela. Pobre garota, serei bom com ela, pois ela se parece com minha irmã que está morta. […] Houve um silêncio por um momento após esse comentário, e os policiais me olharam com mais gentileza, enquanto eu silenciosamente abençoava o juíz de bom coração, e esperava que quaisquer criaturas pobres que estivessem aflitas, como eu fingia estar, encontrassem um homem tão gentil como o juíz Duffy para cuidar delas.” 

A cena mostra como a autora valorizou a postura do juiz Duffy, mesmo com ele defendendo uma forma desigual de tratar as mulheres em julgamento. O juiz leva em conta fatores irrelevantes como a etiqueta, a vestimenta e os relacionamentos afetivos, além de por eles como decisivos para realizar ou não um julgamento menos severo. Mesmo assim, é inegável o quanto Nellie tinha uma consciência muito crítica e a frente do seu tempo, isso não apaga ou deslegitima, de forma alguma, os esforços e as conquistas que ela realizou pela defesa dos pacientes manicomiais e das mulheres. Pelo contrário, torna sua narrativa e sua luta ainda mais complexas e verossímeis.


Além disso, outro ponto que pode ser criticado na narrativa de Nellie em Dez dias no manicômio é a carência de entrevistas. De fato, a maior parte das informações é trazida pelas observações da própria autora sobre o cotidiano do hospício. A presença de depoimentos que pudessem pôr a subjetividade e a história das pacientes como protagonistas da crítica tecida pela jornalista, teria sido muito benéfica para a construção da mensagem do livro. Afinal, havia mulheres lúcidas que estavam há mais tempo que ela na instituição e poderiam trazer falas singulares sobre as injustiças que ali ocorriam. No entanto, é compreensível que Bly não tenha iniciado muitas conversas diretas com as pacientes, ela teria que ser muito discreta, uma vez que corria o risco de acabar com seu disfarce e ser percebida como uma repórter, o que interromperia o progresso da investigação.


Nellie Bly é uma referência do jornalismo investigativo. Não é à toa que ela tem sido retomada no debate literário como um ícone das mulheres jornalistas, seja com novas edições de suas obras, seja com a produção de artigos acadêmicos sobre a sua carreira, por exemplo. Seu espírito aventureiro deve ser cultivado em todos os jornalistas, pois é característico da boa profissional que foi, sempre disposta a lançar um olhar sensível e inovador para suas investigações. Em Dez dias no manicômio essas qualidades estão presentes mais uma vez, fazendo com que o livro alcance duas conquistas louváveis: a da transformação, uma vez que conseguiu causar impacto na cultura e na realidade de sua época, e a da atemporalidade, tendo em vista que muitas das questões abordadas ainda são relevantes para os tempos atuais. 


Fotografia de Nellie Bly (Imagem: Reprodução Getty Images)


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