Carol Ávila
A Mística Feminina rompeu com a visão de que as mulheres só serviam para serem mães donas de casa
O ano é 1963. Betty Friedan acaba de publicar sua longa pesquisa de quase 15 anos em formato de livro. A partir daí a sociedade estadunidense nunca mais será a mesma. A Mística Feminina teve a coragem de questionar e explicar como as mulheres norte-americanas foram empurradas de volta para o lar doméstico no pós-guerra. A escrita de Friedan escancarou o que milhares de pessoas não conseguiam decodificar.
(Capa do livro / Imagem: Reprodução)
Betty Friedan (1921-2006) foi uma jornalista, psicóloga e ativista que, já no final dos anos 1950, começou a perceber um fenômeno muito estranho que surgiu nos EUA depois da 2a Guerra Mundial. Mulheres, antes empoderadas pelas lutas de igualdade de gênero conquistadas nos anos 20, começaram a se afastar cada vez mais de uma carreira profissional.
Meninas desistiam de ir para a faculdade e, mesmo quando escolhiam uma carreira universitária, diziam que seu único objetivo era arranjar um marido no campus. O casamento antes dos 21 anos se tornava algo comum. Os índices de natalidade aumentaram drasticamente na faixa etária de meninas com 19 a 25 anos. Mães donas de casa procuravam cada vez mais ajuda psiquiátrica para um problema que não conseguiam definir.
É assim que Friedan abre seu livro mais famoso, A Mística Feminina, escrevendo sobre o que ela chamou de “o problema sem nome”. Ele não era nada mais nada menos do que a sensação de vazio que fervilhava na mente das mães donas de casa dos subúrbios norte-americano, mas que muitas não conseguiam definir o que era nem de onde vinha. Você certamente já viu em algum lugar a personagem da dona de casa (“housewife”) dos anos 50, que fazia tudo pelo marido e pelos filhos e, geralmente, tinha surtos neuróticos que aliviava com uma taça de vinho, um cigarro e um par de brincos novos. Pois é, um simples estereótipo representado de maneira cômica transparece um problema bem mais profundo. Friedan identificou tal problema em comum nas entrevistas com centenas de mulheres e autoridades psiquiátricas que realizou. O problema sem nome era, resumidamente, o desejo de ter sua própria identidade, de ser mais do que a "mãe do Antonio” ou a “esposa do Carlos”. O problema sem nome foi uma grande denúncia da mística feminina.
Mas o que foi essa mística? Primeiramente, Betty Friedan aponta que assim a chamou de "mística", pois foi um conglomerado de crenças irracionais que dominou a mentalidade norte-americana no período pós-guerra. As crenças, chamadas de "tradições" por seus adeptos, limitavam o papel da mulher na sociedade a uma função apenas biológica e sexual, a afastando do meio profissional e intelectual e a definindo com uma imagem de “feminilidade ideal”. A mística conduziu o papel emergente da mulher no mercado de trabalho de volta para o lar doméstico. Criou-se a imagem de que as mulheres deveriam ter um único objetivo na vida: casar e ter filhos. No meio tempo, poderiam lavar a roupa, encerar o chão, fazer o almoço das crianças, ir ao mercado e esperar o marido chegar do trabalho. Que maravilha, não? Para alguém da nossa sociedade atual seria quase impossível acreditar que as mulheres realmente seguiram isso. Mas aqui não estamos falando de apenas um tio do pavê num almoço de família que fala que mulheres não devem ir a faculdade nem ocupar os cargos dos homens. Quando falamos da mística feminina, trata-se de uma sociedade inteira. O que você faria se os jornais, os livros, os psicólogos, sociólogos, seus professores, família e amigos lhe apontassem para um único caminho?
Friedan mostra como educadores, intelectuais, autoridades psiquiátricas, empresários, a mídia, os homens e as próprias mulheres contribuíram para e se renderam à essa religião. Quase ninguém se safou dessa. A própria Betty escreve que, sendo um membro da sociedade e mulher com carreira profissional, também sofreu sua influência inúmeras vezes. Em seu dia a dia como jornalista, observava suas oportunidades sendo limitadas na redação da revista em que trabalhava -- fora os inúmeros comentários machistas. Felizmente, não só conseguiu perceber a gigante bolha da mística feminina, ainda escreveu um livro revolucionário, que germinou a segunda onda do feminismo norte-americano e, certamente, influenciou a luta feminista em diversos paises.
Como toda regra, a sociedade adepta à mística também teve exceções, como apontou Friedan. Quantas pessoas não levantaram a atenção para as lacunas e irracionalidades das crenças e tradições? Mas, a mística se tornou tão potente que ofuscava qualquer tentativa de desmistificação. Nesse ponto, a mídia foi um grande pilar da perpetuação da mística feminina. Nas manchetes, predominava a visão de que quanto mais educação a mulher tivesse, mais problemas seus filhos e, eventualmente, a sociedade teriam. Os conteúdos de revistas femininas descartavam qualquer assunto que não pertencesse ao lar doméstico, por considerar que as mulheres não eram capazes de entender e nem se interessavam pelos assuntos mais importantes. Pensando no século XXI, tudo isso parece uma grande loucura, mas não está tão distante da nossa sociedade atual. É muito importante também perceber o grande poder que a mídia tem, podendo perpetuar uma imagem que influencia diretamente a sociedade.
(Betty Friedan discursa na Smith College, 1981/ Imagem: Reprodução)
O trabalho jornalístico do livro é impecável. Uma bibliografia extensa aborda inúmeras entrevistas com profissionais de diversas áreas e mulheres de todas as idades, com e sem carreira profissional. Além disso, Friedan faz análises de muitos livros, revistas femininas, e estatísticas de um período de 15 anos que impressionam qualquer um. Outro ponto que denuncia o trabalho excelente da obra é a didática. Betty Friedan atinge assuntos tão profundos com as palavras mais simples, tornando a leitura fluida e compreensiva.
É importante pontuar que o livro trata de apenas um recorte do feminismo -- as condições das mulheres, majoritariamente brancas, mães donas de casa do subúrbio estadunidense -- e por isso não pode ser interpretado como uma visão universal do pensamento feminista. Contudo, os problemas questionados na obra nos permitem compreender muito sobre a atualidade da questão de gênero e o papel social das instituições na desigualdade. Além do mais que, sem dúvida, o trabalho disruptivo e investigativo de Betty Friedan no livro representa a grande essência da luta feminista. A Mística Feminina é um clássico que, enquanto existir desigualdade de gênero no mundo, nunca deixará de ser uma leitura essencial.
Comments