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O Holocausto sob o olhar dos “Filhos de Nazistas”

Com histórias perturbadoras, “Filhos de Nazistas” reúne relatos que surpreendem o leitor e que questionam valores e práticas da sociedade moderna.

Hugo Sena



(Capa do Livro/ Imagem: Grupo Autêntica)

O livro Filhos de Nazistas é o primeiro livro escrito pela advogada penal franco-alemã Tania Crasnianski. Apesar da extensa bibliografia existente sobre a segunda guerra mundial e seus efeitos, a autora, hábil e inovadoramente, fornece a visão dos filhos e dos descendentes dos líderes do regime nazista alemão. Abordando cada família em seu respectivo capítulo, Tania constrói uma narrativa gostosa e surpreendente de ser lida, estabelecendo conexões entre as histórias e seus personagens, a fim de criar um texto fluido e rico.

1 de setembro de 1939. Polônia invadida pela Alemanha nazista e pela União Soviética. Dois dias depois, França e Inglaterra declaravam guerra à Alemanha. O caos já se avizinhava. Tragédias sem precedentes estavam prestes a ocorrer. Seis anos e um dia depois, 2 de setembro de 1945, após as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, a assinatura da rendição do Japão decretou o fim da segunda guerra mundial, mas suas mazelas perduram e nos machucam até os dias atuais. Ao longo da guerra, estima-se que entre 60 e 80 milhões de pessoas tenham morrido, sendo aproximadamente seis milhões de judeus durante o Holocausto. Para todas as famílias que sofreram com a morte de familiares e amigos, sobrenomes como Hitler, Goebbels, Göring, Himmler, Frank, Hess, Speer, Höss, Mengele e Bormann são impossíveis de serem esquecidos por todas as atrocidades cometidas e pelo sofrimento imposto. A máquina mortífera nazista foi, infelizmente, implacável.

Uma das motivações que levaram Tania Crasnianski a escrever esse livro é a sua própria origem. Neta por parte de mãe de um ex-oficial da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, durante o regime nazista, seu avô, assim como grande parte dos líderes nazistas, sempre se recusava a falar sobre o assunto. Portanto, o livro foi uma maneira da autora entender as raízes de sua família e de descobrir os horrores do Terceiro Reich. Nesse sentido, a Crasnianski aborda a visão de oito pessoas que viviam do outro lado da cerca dos campos de extermínio, de oito filhos dos nazistas que articularam os horrores do regime. Pessoas que escolheram compreender a dor causada pelo seu sobrenome e tentaram, de alguma forma, remediá-la e outras que, por diversas razões, geralmente egoístas e ideológicas, decidiram negligenciar a obscuridade de sua linhagem.

Apesar de ter entrevistado somente um dos abordados no livro, Niklas Frank, Tania Crasnianski reuniu relatos, documentos, cartas, entrevistas e livros, e os juntou para formar um retrato de como esses filhos enxergam os pais e suas atitudes. Um sentimento comum a todos, especialmente àqueles que tiveram um contato mais próximo com os pais e os viam como exemplos, é a relutância e a dificuldade em separar esse amor para fazer, ou ao menos tentar, uma reflexão sóbria sobre o seu passado. Encaixam-se nessa descrição Edda Göring e Gudrun Himmler. Filhas de Hermann Göring e Heinrich Himmler, respectivamente.

Como conta a autora nos terceiro e quarto capítulos do livro, as trajetórias de Gudrun Himmler e Edda Göring são incrivelmente semelhantes. Edda é filha do comandante-chefe da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, Hermann Göring. Já Gudrun, por sua vez, conhecida como “princesa nazista”, é filha de Heinrich Himmler, comandante da polícia nazista, a SS. As duas, inclusive, são afilhadas de Adolf Hitler. Pais e filhas nutrem um amor incondicional um pelo outro. Por exemplo, no dia do nascimento de Edda, Hermann ordenou que 500 aviões sobrevoassem Berlim como forma de celebração. Muito ocupados pelas obrigações da guerra, Göring e Himmler conversavam frequentemente com as filhas por meio de cartas, sempre carinhosas, mas que jamais expunham qual era, de fato, seu trabalho. Protegidas pela distância e pela falta de informação, ambas desconhecem os horrores da guerra e a tragédia infligida pelos pais até a derrocada alemã, quando a imprensa mundial expõe o verdadeiro objetivo dos campos de extermínio e do regime nazista. Elas também não sabiam que os encontros com os pais se tornariam cada vez mais escassos.

Em novembro de 1944, Gudrun e Heinrich se viram pela última vez. Já Edda e Hermann, no dia 15 de outubro de 1946. Göring e Himmler se suicidaram por meio da ingestão de uma cápsula de veneno — mas isso não suscita coincidência alguma, na medida em que era comum líderes alemães, nesse período, carregarem tais frascos, a fim de não darem informações privilegiadas sobre as políticas nazistas. Edda e Gudrun jamais consideraram a hipótese de mudar seus sobrenomes. Pelo contrário, sempre tiveram orgulho deles e de seus pais, além de negarem seus papéis no Holocausto - foram eles que arquitetaram a Solução Final, o extermínio em massa dos judeus. Contudo, sempre há excessões. Niklas Frank é uma delas, embora o sobrenome Frank nunca tenha sido também um problema para ele.

De forma resumida e direta, Niklas Frank odeia o seu pai, Hans Frank, e nunca ignorou sua pesada origem. Niklas descreveu o pai como “assassino”, "fraco", “fútil", “hipócrita”, “covarde” e “puxa-saco” e afirmou: “ Não tenho medo do passado, quero saber tudo”. Se pudéssemos sintetizar Hans Frank em duas frases suas, seriam as seguintes: “ É um prazer ter finalmente a chance de atacar fisicamente a raça judaica” e “quanto mais morrerem, melhor”. Essas frases foram ditas em seu discurso de apresentação como governador-geral da Polônia, em 1939. Não por menos ele ficou conhecido como o “açougueiro da Polônia”. É esse mesmo homem que, após sua prisão, acusou Hitler, Himmler e Martin Bormann, secretário de Hitler, pelas atrocidades do Terceiro Reich. Com efeito, Niklas é o completo oposto de Gudrun e Edda. Nunca teve uma relação próxima com o pai e, aos 4 anos, se deparou com a verdadeira realidade das comunidades judias: Niklas foi a um gueto judeu, acompanhado de sua mãe, e encontrou, em sua versão mais autêntica, o antissemitismo alemão. Sujeira. Tifo. Cadáveres espalhados. É esse cenário que presencia o pequeno Niklas e que o marcará para sempre. Apesar de todo o seu rancor e ódio para com seu pai, ele não tinha o desejo de mudar seu sobrenome: ele afirmou que o sobrenome Frank é muito comum, em alemão, e que, se seu sobrenome fosse Himmler ou Göring, sua vida teria sido pior.

A partir dessas trajetórias descritas no livro, é possível questionar as posições de Edda e Gudrun. Porém, não do ponto de vista de seus sentimentos profundos pelos pais, pois isso jamais é questionado. O que deve ser discutido são suas incapacidades e a relutância de dissociar as imagens de Hermann e Heinrich como pais, das figuras políticas no regime nazista. Edda e Gudrun nunca foram a um gueto nazista como Niklas, mas certamente viram fotos e ouviram relatos dos atos inumanos cometidos nos campos de extermínio. Esse amor cego é uma espécie de devoção que elas sentiam pelos pais, aparentemente algo de cunho religioso, como se eles não tivessem defeitos. Entretanto, seus sobrinhos-netos têm uma visão completamente diferente.

Se, por um lado, Niklas, Edda e Gudrun não se importavam com o peso de seus sobrenomes, por outro, os sobrinhos-neto de Göring se opõem radicalmente a isso. Bettina Göring e seu irmão tomaram decisões drásticas. A fim de não perpetuar a linhagem dos Göring, eles decidiram se esterilizar, tamanha era a culpa que sentiam. Já Matthias Göring se converteu ao judaísmo e encara seu sobrenome como uma oportunidade. Em entrevista à revista norte-americana The Atlantic em outubro de 2013, ele afirmou: “Não me sinto culpado. Há uma culpa espiritual em nossa família, na nação alemã, e é nossa responsabilidade declarar isso abertamente. Acredito que Deus resolveu usar meu nome para mudar algumas coisas no coração dos outros”.

É inconcebível pensar que, com tantas provas que refutam suas posições, elas se mantenham fiéis à crença da inocência dos pais. Isso, infelizmente, é sintomático da sociedade atual, esta falta de análise e de um pensamento crítico dissociado de dogmas políticos e de relações de parentesco nos cega e nos torna complacentes com atos inconstitucionais que nos atingem diariamente. Essa foi outra razão que motivou Tania a escrever Filhos de Nazistas.

A autora classifica o recente crescimento dos movimentos nacionalistas de extrema-direita na Europa como “preocupante”. Em entrevista ao canal do Youtube da Editora Vestígio, a editora responsável pela publicação do livro no Brasil, ela destacou: “ Assistimos a uma banalização da extrema-direita na Europa, que é muito perigosa, e isso vem desde os anos 2000”. Tania também salienta que, mesmo em outro momento, episódios obscuros podem voltar se não aprendermos com a história: “No meu livro, chamo a atenção para o fato de que o horror pode se reproduzir de formas diferentes, porque vivemos num contexto diferente, mas que nunca estamos a salvo quando somos incapazes de entender as lições da história”.

Em 2017, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão), alcançou 13,2% dos votos e garantiu 87 assentos para o Parlamento alemão, o Bundestag. Para se compreender o tamanho dessa marca, ela não era atingida desde a Segunda Guerra Mundial. Na Hungria, em meio a pandemia do novo coronavírus, o Parlamento aprovou, em algumas oportunidades, um estado de emergência que permite ao primeiro-ministro, o ultradireitista Viktor Orbán, governar por meio de decretos, o que flerta com o autoritarismo, na medida em que o concede poderes irrestritos. Além disso, Orbán, em abril de 2021, se reuniu com líderes conservadores de Polônia e Itália com o objetivo de criar um bloco de oposição ao Partido Popular Europeu (PPE), bloco também conservador que domina o Parlamento Europeu há duas décadas. Em entrevista coletiva, o húngaro disse: “A PPE deixou de trabalhar conosco, isso por si só diz tudo”, e afirmou também que o objetivo central é garantir que os democratas cristãos da Europa tenham voz. No Brasil, é rotineiro ver manifestações populares, em defesa ao presidente da república Jair Bolsonaro, reivindicando intervenção militar, criminalização do comunismo e fechamento do Supremo Tribunal Federal. Em Mianmar, militares tomaram o poder do país em fevereiro de 2021, após considerarem as eleições fraudulentas e que ficaram marcadas pela falta de participação de minorias étnicas. Em suma, exemplos ao redor do mundo não faltam.

É por movimentos políticos como esses que livros, filmes, documentários e pesquisas como Filhos de Nazistas são imprescindíveis para que nos tornemos cada vez mais conhecedores da história. Todos já ouvimos frases como: “Quem não conhece a história está fadado a repeti-la”. No entanto, será que realmente a colocamos em prática? Com base nos exemplos de Hungria, Alemanha, Brasil e Mianmar, comprova-se que não.



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