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O famoso resfriado de Frank Sinatra

Foto do escritor: Pitacos Pitacos

José Mário Curvo Ferraz Santos

(Foto: Reprodução/Esquire)


Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele.

Com essa frase, Gay Talese iniciou a sua grande obra-prima. Nas 55 páginas do texto original, o jornalista estadunidense proporcionou uma aula de escrita, de descrição, de organização de ideias, de apuração e de transmissão de ideias aos leitores. E, como se não bastasse, deixou sua marca no jornalismo literário e no new journalism.


Em 1965, Gay Talese foi enviado a Los Angeles para uma entrevista exclusiva com o cantor Frank Sinatra, pela revista Esquire. Estava tudo certo, no entanto o assessor da estrela estadunidense, Jim Mahoney, cancelou o encontro com o jornalista. O motivo? Um resfriado! Alguns teriam desistido da pauta com o maior astro mundial da época. Mas, Gay Talese pode ser tudo, menos um jornalista qualquer. Então, ele simplesmente mudou o rumo da pauta e escreveu aquele que tido por muitos o melhor perfil da história da imprensa: Frank Sinatra está resfriado.


Sem acesso direto à Frank Sinatra, Talese precisou cumprir uma das premissas do jornalismo: a boa apuração. Ele passou seis semanas em Los Angeles, em contato direto com todas as pessoas próximas ao cantor, o que lhe rendeu mais de 100 entrevistas e 200 páginas de anotações. Com esse mergulho no universo “sinatriano”, nasceu um texto com descrições minuciosas e revelações inéditas de uma das maiores estrelas de Hollywood. E, assim, caracteriza-se o jornalismo literário, vertente marcada por textos subjetivos com descrições dos personagens envolvidos na notícia.


A capacidade de Talese em buscar a notícia por meio da apuração precisa ser muito elogiada, principalmente nos tempos atuais. Hoje, muitos repórteres não têm esse faro para apuração. Em uma geração nascida na era da internet, tornou-se comum as conversas via WhatsApp ou e-mail e não via ligação ou até em encontro pessoal. Logo, se por um lado os dispositivos eletrônicos tornaram mais rápida a comunicação, por outro facilitaram a vida do entrevistado ou do assessor. Explico: o entrevistador envia as perguntas no chat e aguarda a resposta do entrevistado; esse pode responder quando quiser após sua assessoria pensar na melhor resposta possível, o que seria impossível em uma conversa “olho-a-olho”.


Pelo seu trabalho de apuração e por seu texto, Gay Talese pode ser facilmente confundido com um repórter de celebridade, o que ele não era. Mesmo assim, a sua obra provoca uma certa reflexão aos jornalistas dessas editorias e, evidentemente, de qualquer outra área. Um ensinamento é sobre ética jornalística, que envolve desde não citar fontes, um princípio básico, até o respeito com o personagem da pauta. Por exemplo, em certo ponto da reportagem, Talese conta com detalhes um momento de fúria de Sinatra, que jogou ketchup em um de seus amigos. Além de demonstrar respeito e imparcialidade ao contar a história, o jornalista apenas publicou e não buscou repercussão em cima disso. Vale lembrar que o texto nasceu após uma recusa do empresário de Frank, que usou um resfriado como justificativa. Em vez de levar todo seu ressentimento para a pauta após o cancelamento da entrevista por um motivo banal, Talese fez questão de explicar o impactante resfriado de Sinatra. Mais um ponto para a ética jornalística do autor.


Atualmente, é comum vermos alguns profissionais usarem pautas para se autopromover. Muitos jornalistas querem ser maiores do que a matéria e buscam a fama por meio da profissão, cujo objetivo é apenas informar, nada mais do que isso. Hoje, nota-se repórteres apurando, eticamente ou não, casos de publicidades e até ameaçarem a publicação de provas, marcando artistas, jogadores, entre outros, em redes sociais para simplesmente ganhar engajamento. Podemos citar o exemplo do jornalista Léo Dias que frequentemente envolve-se em polêmicas com famosos.


Ora, se o profissional tem como provar suas acusações, faça isso na sua matéria e não no Twitter, Facebook e Instagram para ganhar a famigerada “mídia”. É lamentável que pessoas entrem na profissão com o intuito de ser uma celebridade, chega a ser um desserviço ao jornalismo. Diferentemente disso, Gay Talese deixa claro no texto que o personagem principal é Frank Sinatra.

(Foto: Reprodução/Esquire)


A escrita também chama a atenção. Apesar do texto ser considerado do gênero do jornalismo literário, o vocabulário não é rebuscado, como o de muitos livros. Talese optou por uma descrição minuciosa dos fatos de maneira clara e objetiva, da mesma forma que um texto jornalístico comum faria. Até quando a história, centrada na apresentação do cantor no The Voice, sofre uma digressão, o leitor consegue ficar atento aos acontecimentos sem grande esforço devido a essa linguagem simples, adotada pelo jornalista.


A ordem cronológica dos fatos, ao meu ver, ajuda em uma desconstrução do leitor sobre Frank Sinatra. No começo, vemos um homem de difícil acesso, até para Gay Talese, com mesa separada em estabelecimentos, que passa a imagem de um ser poderoso, distante da realidade de grande parte da sociedade. Mas, com o passar do tempo e o mergulho no universo “sinatriano”, por meio da descrição de pessoas próximas, amigos, família, percebe-se que, assim como todas as celebridades, é um ser humano comum também. Com o desenrolar da história, pode-se perceber esse lado, até em certo ponto oculto, do descendente de italianos mais famoso dos Estados Unidos. No final da obra, Talese descreve um simples sorriso de Sinatra de dentro do seu carro em um momento cotidiano da sua vida: ser encarado por pedestres, na dúvida se o cantor realmente é ele.


Frank Sinatra parou o carro. O sinal estava vermelho. Os pedestres foram passando rapidamente na frente de seu para-brisa, mas como sempre acontece, um dos passantes não foi embora. Era uma moça de uns vinte anos. Ela ficou parada no meio-fio, olhando para ele. Sinatra a via pelo canto do olho esquerdo, e sabia, pois isso acontece quase todo dia, que ela estava pensando "É parecido com ele, mas será que é ele?".
Pouco antes de o sinal abrir, Sinatra voltou-se para ela, olhou-a diretamente nos olhos, esperando pela reação que fatalmente viria. Veio, e ele sorriu. Ela sorriu, e ele se foi.

Essa é uma cena que pode ser facilmente imaginada pelo leitor. É o final perfeito para a obra de Gay Talese, que demonstra a face humana de Frank Sinatra por meio do simples ato de sorrir. A descrição desse fato foi tão bem feita e impactante que consigo imaginar uma reprodução dessas imagens. E, para minha surpresa, há planos de levar a história do resfriado de Frank Sinatra para o cinema. Em 2017, as filhas do cantor, Nancy e Tina, compraram os direitos do texto e esperam que o filme seja dirigido por Nicholas Pileggi, jornalista especializado na máfia, em parceria com o próprio Gay Talese, hoje com seus 88 anos.


Para todos os fãs e admiradores de Frank Sinatra: leiam o texto. Garanto que aumentaram ainda mais o encanto com o cantor. Para todos os estudantes ou interessados no jornalismo: leiam, façam anotações e apreciem esse exemplo perfeito, uma aula de como exercer a profissão. Podem ter certeza que não se arrependeram de ler essa reportagem que, muito provavelmente, já deve ter sido sugerida por algum professor da sua faculdade. E, para qualquer um: leia também. As características da literatura presente na reportagem consegue prender a atenção de um leigo em Frank Sinatra e em jornalismo. No mínimo, a leitura pode oferecer um maior conhecimento sobre a cultura geral, senão impulsionar uma pesquisa mais elaborada sobre o cantor ou sobre a profissão de um jornalista.


Termino essa resenha da incrível aula gratuita de jornalismo com uma pequena reflexão. Chega a ser cômico imaginar que o maior texto da história do jornalismo poderia nunca ter sido redigido pelas mãos de Gay Talese, caso Frank Sinatra não tivesse pego o tão famoso resfriado. Mas como o próprio cantor disse em That’s life: “Essa é a vida, e é tão engraçada quanto possa parecer”.


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