top of page
Buscar
  • Foto do escritorPitacos

Morte Omissa: como as maiores vítimas da COVID-19 passaram a não existir

Julia Florêncio


A matéria Atingidos pela pandemia, indígenas contam seus mortos e acusam governo de omissão, escrita por Ricardo Westin e publicada no Portal Senado Notícias, explora a situação única em que se encontram os povos indígenas no Brasil em meio à pandemia da COVID. Desta forma, a reportagem destrincha por meio da análise do próprio arquivo do Senado - composto por discursos, debates e até projetos de lei de diversos senadores - a forma como o governo do país vira as costas para essa parcela já marginalizada da população. Num momento de crise mundial em que ações do governo são decisivas sobre se um grupo vive ou morre, é importante destacar matérias que mostrem como diferentes comunidades estão sendo tratadas, especialmente quando a comunidade em questão está sendo assolada. Também é válido ressaltar que o site em que a matéria está sendo analisada tem como parte significativa do público-alvo jornalistas em formação, que certamente se beneficiam de matérias que trazem uma nova perspectiva acerca de um tema tão comentado e tão atual.


Westin descreve que embora muitos indígenas vivam em áreas mais remotas e dispersas pelo país, o que teoricamente os deixaria mais protegidos da pandemia, o número de casos da doença nas comunidades originárias é alto. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mais de 23 mil indivíduos foram infectados e em torno de 650 já foram mortos; em média, morrem quatro indígenas todos os dias, desde o início da pandemia no Brasil. O número absoluto de indígenas mortos pela COVID é semelhante ao da população austríaca, dez vezes maior que a dos povos originários brasileiros. O que esses dados mostram é que a doença é muito mais devastadora aqui.


Segundo o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, a população indígena arrisca ser dizimada pelo coronavírus. Numa tentativa de evitar que não-indígenas introduzissem o vírus nessas comunidades, alguns povos barraram as estradas que levam aos seus territórios, mas a Fundação Nacional do índio (Funai) se opôs a essa medida, criando uma campanha com a frase “o Brasil não pode parar”. Fora isso, ONGs de defesa aos povos originários afirmam que o atendimento de saúde não é sempre satisfatório, uma vez que que o número de médicos caiu significativamente com o fim do programa Mais Médicos, que contava com mais de 8 mil médicos cubanos que atendiam pelo Sistema Único de Saúde (SUS). É notável a forma como a matéria busca ressaltar que não só não foram propostas ações por parte do governo para defender as comunidades indígenas, mas que as ações que foram feitas em relação a esse grupo mais atrapalharam do que ajudaram.


Nessa perspectiva, Westin pontua que o atendimento a esses povos se torna especialmente difícil quando a aldeia fica longe dos centros urbanos. Os postos de saúde, quando existem, são equipados para tratar apenas as doenças mais simples ou que não tenham complicações, o que não é o caso da COVID-19. Se um indígena precisar ser internado em um hospital, podem ser necessárias viagens de barco de dois ou três dias. Para as tribos mais afastadas que necessitam de aviões, esse contato está disponível apenas uma vez por mês. Além disso, o governo federal não faz a contagem completa dos infectados e mortos pelo vírus na população indígena. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), integrante do Ministério da Saúde, cuida somente daqueles que vivem em terras homologadas; os povos habitantes de territórios ainda não regularizados ou que vivem nas cidades não entram nas estatísticas do governo federal. Segundo as ONGs, a falta de estatísticas precisas impossibilita a criação de ações bem-sucedidas de proteção dos indígenas contra a COVID-19.


É interessante que o autor do texto tenha ressaltado a forma como o governo tenta driblar a contagem das mortes indígenas e a formulação de planos efetivos contra a disseminação do vírus nesse grupo, dada a relação entre um dos pilares do governo Bolsonaro e os povos originários. Apoiado fortemente pelo setor agropecuário, a relação do atual governo com os povos indígenas sempre foi hostil. Em discurso recente na ONU, o presidente Jair Bolsonaro colocou a culpa dos incêndios na Amazônia nos povos indígenas ao afirmar que “Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares,(...) onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”. As lideranças indígenas são, hoje em dia, os maiores defensores dos ecossistemas brasileiros, além de possuírem reservas indígenas em áreas cobiçadas pelo agronegócio. Dessa forma, deixar com que uma população marginalizada em conflito com seus mais poderosos apoiadores seja aniquilada de forma silenciosa mais parece uma estratégia política que um simples problema de logística na coleta de dados e atendimento médico.


Frente ao crescente número de casos de coronavírus entre os povos originários e a inércia do Poder Executivo, os Poderes Judiciário e Legislativo se viram na obrigação de agir. Por meio de uma ação do Supremo Tribunal Federal, o Judiciário ordenou à gestão Jair Bolsonaro algumas medidas de proteção, tais como o erguimento de barreiras sanitárias na entrada dos territórios indígenas para garantir o isolamento social, e a expulsão dos ocupantes ilegais dessa área, pelo risco de serem vetores do vírus, entre outras. A ação veio em resposta a uma denúncia ajuizada contra o governo federal pela Apib e os partidos de oposição PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL e Rede. No Legislativo a ação veio por meio da aprovação no Senado e na Câmara dos Deputados de um projeto de lei da deputada federal Professora Rosa Neide (PT-MT) que designa medidas a serem tomadas pelo governo federal a favor dos indígenas na pandemia. A lei foi sancionada em julho, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou diversos artigos considerados imprescindíveis pelos parlamentares. Senadores e deputados avisaram, entretanto, que votarão pela derrubada dos vetos quando forem analisados pelo Congresso Nacional.


Por causa da decisão de Bolsonaro em relação ao projeto de lei apresentado, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que preside a Comissão do Meio Ambiente do Senado (CMA), denunciou Bolsonaro ao relator especial da ONU para os direitos dos povos indígenas, José Francisco Cali Tzay. Contarato afirma que “o que estamos vendo e o que as lideranças indígenas denunciam é um tentativa de genocídio”.


A situação dos indígenas fica ainda mais complexa quando se leva em conta que, de maneira geral, eles têm um modo de vida comunitário, muitas vezes compartilhando utensílios domésticos e dormindo em grandes grupos na mesma maloca, que não costuma ter janelas. Uma vez que o vírus da COVID é introduzida numa aldeia, a disseminação é rápida. Além disso, diversos indígenas vivem na miséria, em especial aqueles que moram nas periferias da cidade e os que ainda não tiveram suas terras regularizadas,e vivem de forma precária à beira das estradas, tendo assim pouco ou nenhum acesso ao saneamento básico e à saúde pública. Se tornam vítimas fáceis da pandemia.


Westin segue o texto explicando que o termo “genocídio” empregado pelo senador Contarato não é exagerado, já que muitos grupos indígenas no Brasil são compostos de poucos indivíduos, basta que o vírus se instale entre eles para que aquele povo seja dizimado. Essa explicação é imprescindível para o entendimento do papel dos povos indígenas no governo atual: uma vez que esses povos estão fora de cena, a maior resistência contra a expansão desvairada da fronteira agrícola some e a natureza brasileira pode ser entregue na mão dos agropecuaristas sem maiores conflitos. A preservação da cultura e tradições indígenas também é um direito previsto na Constituição e não se pode dizer que tal direito está sendo respeitado quando se permite que esses povos desapareçam um por um por conta de negligência estatal.


Quando questionados em audiência pública pela comissão do Congresso que fiscaliza a atuação do governo federal durante a pandemia sobre a questão indígena, os representantes da Funai negaram as acusações de inércia do governo federal e até mesmo afirmaram ter apoiado a formação de barreiras sanitárias nos territórios indígenas. A Sesai também negou qualquer omissão e afirmou ter implementado medidas para proteger as comunidades indígenas. A matéria deixa aparente como mentiras e desinformação são práticas de praxe da gestão Bolsonaro, e tais práticas me parecem ter estratégia política clara: são usadas para instalar medo, desprezo e insegurança na população para a qual ele emerge como única alternativa possível. Não seria surpreendente se, caso o seu plano de extermínio da população indígena fosse bem-sucedido, fôssemos forçados a ouvir algum grande discurso sobre como ele conseguiu sozinho resolver a questão dos incêndios, seguido de elogios exacerbados às proezas do agronegócio.


Atingidos pela pandemia, indígenas contam seus mortos e acusam governo de omissão expõe à população do país a realidade de um grupo quase inexistente na mentalidade brasileira e nos mostra como essa inexistência não é por acaso. A importância deste texto reside no mesmo motivo que o torna tão enfurecedor: os fatos são claramente postos à nossa frente para logo depois sermos forçados a ler mentiras e distorções por parte daqueles que deveriam estar focados em usar os dados disponíveis para promover ações e projetos que garantam o bem estar de toda a população. Mais do que isso, a matéria aparece como uma forma de alertar a sociedade brasileira de um problema que está acontecendo agora, de algo que precisa de apoio e pressão popular para ser combatido. Se o governo impede que os indígenas tenham voz, que emprestemos a nossa à eles.


98 visualizações2 comentários

Posts recentes

Ver tudo

Violência de gênero na política: o que é e como combater

Laura Alexandre O número de mulheres na política ainda é pequeno no Brasil. De acordo com reportagem da Folha de São Paulo a partir de dados da União Interparlamentar, o Brasil está em 142° lugar no r

bottom of page