Julia Florêncio
No artigo Guerra Cultural no meu Quintal de Marcos Caetano, o brasileiro explora a forma como a radicalização política no país bipartidário levou a uma aparente “guerra cultural” entre democratas e republicanos, aumentando as tensões na sociedade estadunidense. O artigo, publicado na revista Piauí, traz considerações importantes no que tange à eleição nos Estados Unidos, explicando não só um pouco da história do país como a do comportamento do eleitorado, frisando momentos importantes que definiram mudanças nesses padrões e traçando um paralelo com o momento crítico em que o país se encontra.
Caetano abre o texto explicando que a disputa bilateral entre liberais e conservadores, refletida no sistema político estadunidense pelos partidos Republicano e Democrata, sempre foi benéfica aos cidadãos e instituições do país, mas que, ultimamente, as tensões no ambiente público têm se intensificado. O autor aponta a expansão das redes sociais e o descrédito das instituições e da imprensa tradicional como responsáveis por agravarem o tom do debate político, levando a um aumento na animosidade entre as pessoas, que tornam até os assuntos mais ordinários em confrontos radicais entre duas visões de mundo. Esse cenário se tornou evidente até no discurso de políticos. Ao aceitar a indicação à Presidência pelo Partido Democrata, Biden faz parecer em seu discurso que a eleição será uma luta do bem contra o mal que determinará o futuro da democracia dos EUA. Apesar de focar na sociedade e política estadunidense, não é difícil notar semelhanças com o estado atual da política brasileira. O texto se torna importante, portanto, não só por explicar de forma relativamente simples as complexidades do cenário político dos Estados Unidos, que influencia todo o globo, mas porque, a partir da análise da situação de outro país, nos permite enxergar o ponto de início e ebulição de fenômenos também presentes no Brasil.
O comentarista então discorre acerca da história do sistema eleitoral e do perfil dos eleitores no país, apontando que, segundo historiadores, a divisão ideológica dos Estados Unidos se instalou a partir da Guerra de Secessão, na qual o país se dividiu entre o Sul escravocrata e o Norte de fraco passado colonial. No passado, os democratas tinham uma postura mais conservadora, sendo mais próximos dos segregacionistas e membros da Klu Klux Klan, enquanto os republicanos eram os mais progressistas. A mudança só veio após a assinatura da Lei dos Direitos Civis em 1964 pelo democrata Lyndon Johnson, que levou o eleitorado negro a apoiar fortemente os Democratas. A partir da segunda metade do século XX, o Partido Democrata passou a assumir bandeiras “liberais” e os republicanos assumiram o papel mais conservador. Como o assassinato de JFK transformou um clássico democrata do Sudoeste, ou seja, um homem sem interesse na questão racial, num campeão dos direitos civis, mas sem o carisma e popularidade de Kennedy, os dois partidos “mergulharam mais fundo nas suas trincheiras ideológicas”. Destacar essa mudança ideológica dos partidos a partir do deslocamento do apoio do eleitorado negro é importante quando levamos em consideração as diversas denúncias de que o sistema eleitoral estadunidense é montado de forma a agrupar distritos racializados, que tendem a votar em candidatos mais “liberais”, em distritos específicos; uma estratégica conhecida como gerrymandering. Dessa forma, partidos específicos conseguem assegurar vitórias nesses estados, caracterizando-os como historicamente democrata ou republicano.
Caetano então diz que a situação hoje em dia está pior, pois foram rompidas as barreiras de civilidade, compostura e tolerância que antes definiam a convivência entre as pessoas e entre políticos e eleitores. Além disso, a mídia espelha esses atritos, se dividindo basicamente entre pró ou contra Trump. O problema dessa divisão da imprensa, especialmente quando a própria população está tão radicalizada, é que se cria uma guerra de narrativas onde a denúncia de muitas atividades graves do presidente e pessoas ao seu redor é vista como meras diatribes e não são tratadas, infelizmente, com a seriedade que deviam. Esse ponto é relevante não só para explicar a situação nos Estados Unidos, mas também para se pensar a atual situação política brasileira. Em maio desse ano, o grupo de hackers autointitulado Anonymous vazou uma lista de pessoas ligadas ao financista Jeffrey Epstein e seu sistema de tráfico e abuso sexual de crianças, entre elas a modelo Naomi Campbell, os Kennedy, membros da família real britânica, o brasileiro Pedro Diniz e o presidente Donald Trump, incluindo diversas denúncias onde meninos e meninas entre 13 e 15 anos narravam o abuso sofrido pelo presidente estadunidense. Por mais chocante que esse tipo de notícia seja, pouco abalou os apoiadores de Trump. Sua taxa de aprovação se manteve entre 46% e 36,5% durante todo o seu mandato, sendo uma das mais estáveis nos últimos cem anos. Nem mesmo após descobrirem que o presidente sabia da gravidade da pandemia desde fevereiro, mas decidiu minimizar a doença, fato considerado um crime pelos mais progressistas, pareceu abalar seus apoiadores. Eles preferiram chamar de sabotagem o vazamento dos áudios.
Uma situação parecida é facilmente notada na política brasileira. Não importa quantas vezes o presidente Jair Bolsonaro e sua família sejam acusados de serem ligados a organizações criminosas e a bandidos ou quantos crimes eles estejam sendo acusados, seja intervenção na Polícia Federal ou caixa dois, pouco efeito essas acusações parecem ter sobre os seus apoiadores, que continuam vendo no atual presidente uma pessoa de exemplo a ser seguido. Esse não é o único ponto em comum entre Bolsonaro e Trump. Além do saudosismo cansativo e do caráter conservador e discriminatório, ambos os presidentes são adorados pelos seus pela característica que mais enfurece seus opositores: sua forma rude de falar. Quanto mais estupidamente eles atacam a imprensa e as instituições e leis do próprio país, mais seus fantoches torcem e aplaudem.
Mas essa atmosfera não foi criada de repente. A guerra cultural-narrativa brasileira que fomenta a política de Bolsonaro, segundo o pesquisador da UERJ João Cezar de Castro Rocha, vem de uma visão revisionista do Golpe de 1964 e que visa estimular o ódio contra a esquerda, ou qualquer ideia que julguem de esquerda, no país. Isso é feito a partir da narração dos crimes cometidos pela luta armada no Brasil durante a ditadura numa tentativa delirante de tentar estabelecer momentos na história brasileira na qual a esquerda tentou tomar o poder. Uma das tentativas, que eles dizem ser a mais perigosa de todas, se dará num futuro próximo com a infiltração das instituições, sobretudo de cultura, para moldar uma mentalidade que seria propícia à criação do comunismo. Não é difícil identificar nesse breve parágrafo o discurso predominante no governo de Bolsonaro e de seus políticos aliados. Baseando-se na narrativa de infiltração dos “comunistas” nas instituições, especialmente as de cultura: imprensa, arte e escolas e universidades, as ações do governo buscam destruir as instituições correspondentes àquelas que supostamente querem instalar uma ditadura do proletariado no Brasil.
Esse constante ataque às instituições culturais, sobretudo a imprensa, tanto por parte de Bolsonaro quanto de Trump, somado a dominância do debate político na terra de ninguém que são as mídias sociais, leva a criação de um solo fértil para o crescimento de teorias da conspiração, como as desenvolvidas por QAnon.
O anônimo autointitulado Q começou a postar suas teorias em blogs de 4chan e 8chan, mas em pouco tempo foi ganhando inúmeros adeptos que passaram a divulgar suas teorias com a hashtag #QAnon e hoje em dia se tornou uma espécie de culto. QAnon, que alguns acreditam ser o próprio Trump, propaga pela internet que o presidente dos EUA é a última barreira capaz de barrar o movimento de destruição dos valores estadunidenses tradicionais. Segundo ele, a falência moral e política do país vem sendo planejada e financiada por bilionários pedófilos e adoradores do Diabo, alinhados às lideranças democráticas e o Deep State (Estado profundo), que estariam agindo na surdina no centro do poder a fim de sabotar instituições conservadoras.
Apesar de soar um tanto delirante, as frases de QAnon se fazem presentes em diversos comícios republicanos, a mais famosa reduzida na sigla WWG1WGA (Where We Go One, We Go All) (Para onde vai um de nós, vamos todos - em tradução livre). Até o próprio Trump já compartilhou vídeos e posts de seguidores desse culto, embora depois tenha dito que o fez sem checar de onde vinham. Hoje em dia, até candidatos republicanos alinhados a essas ideias disputaram vagas no Congresso, sendo Marjorie Greene a primeira representante da seita QAnon a chegar ao governo, eleita pelo estado da Geórgia.
Caetano também aponta que o crescimento da “cultura do cancelamento”, quando alcança a imprensa profissional, aparenta ser uma “aversão ao pluralismo” que apenas aumenta a desconfiança daqueles que já desconfiavam e criticavam o enviesamento de jornalistas. Quando se soma a protestos contra palestras de conservadores no meio acadêmico, é possível entender o porquê de aqueles que não se vêem como progressistas migrarem para fontes como QAnon.
No seu texto, Caetano reforça que nem todos aqueles que acreditam nessas teorias ou nas mentiras desvairadas de Trump são movidos por ódio aos adversários políticos, obediência cega à radicais ou burrice. São cidadãos comuns, às vezes com forte viés patriótico, que desconfiam da imprensa, mas que desejam participar do debate público. Afastados do jornalismo profissional, se tornam presas fáceis de radicais que os estimulam a buscar informações, que dizem ser a “verdade”, na internet, em canais alternativos, onde não há nem lei nem checagem. No Brasil, essa verdade alternativa encontrou o meio perfeito de chegar na população de forma compactada e de simples entendimento: o WhatsApp. É por ele que chegam “todas as informações que o governo não quer te mostrar”, como o plano de colocar a foto da Pabllo Vittar na nota de 50 reais, e é por ele que se organiza as grandes manifestações pró-Bolsonaro. Assim como na seita QAnon, pouca importa o quão desconectada da realidade essas “verdades” sejam; elas são capazes de virar eleições e movimentar a população, pois cumprem a sua missão principal: instigar medo e mexer com as inseguranças daqueles que enxergam as mudanças sociais e de valores como uma ameaça.
Esse é um ponto importante. Nenhuma medida ou debate acerca do tema fake news ou teorias da conspiração será eficaz e produtivo, se não tivermos em mente que as pessoas que acreditam nessas informações não são nem burras nem vilãs, mas apenas cidadãos normais cujas inseguranças foram manipuladas por um grupo político bem organizado.
A guerra cultural resultante, portanto, está cada vez mais aparente no cotidiano. Caetano menciona adesivos de carros que dizem para não confiar no jornal mais lido na região e cartazes de políticos nos quintais. Ele conta que, após as manifestações do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), um dos seus grupos de WhatsApp começou a ser inundado por fotos e vídeos de invasões de propriedade que alegavam ter acontecido durante os protestos. Quase todos eram falsos, incluindo confrontos antigos e outros que aconteceram em outros países. Quando um dos integrantes alegou que certas imagens eram de uma vizinhança perto de onde moravam, os outros integrantes passaram a enviar fotos de seus armários lotados de armas ou até mesmo aproveitaram a oportunidade para deixá-las carregadas sobre a mesa de salas e escritórios.
Como diz o próprio autor, no fim das contas restam apenas dois caminhos: buscar o diálogo, esforçando-se sempre para compreender o que passa na cabeça dos que estão do lado oposto ou transformar toda e qualquer conversa num debate político fervoroso. Guerra Cultural no meu Quintal é um texto indispensável nos tempos de hoje por conta da clareza e facilidade com que o autor explica a situação política dos Estados Unidos e porque nos permite traçar paralelos com a situação no nosso próprio país, facilitando os processos de desenvolvimento de uma solução à atual animosidade entre as pessoas.
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