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“Eu Estive na Guerra” revela o Vietnã através da experiência de um repórter ferido

Felipe Galeno


A Guerra do Vietnã é, provavelmente, o terceiro mais marcante conflito militar do século XX, atrás apenas das duas Grandes Guerras Mundiais. Os confrontos bélicos no território vietnamita não foram a única guerra a acontecer no mundo desde os anos 50. Na verdade, sequer foram os únicos conflitos a acontecer na região da Indochina nesse período. Ainda assim, há algo sobre a "Guerra de Resistência contra a América" (como os vietnamitas a chamam) que a fez se sobressair dentre outros confrontos resultantes do cenário de tensão ideológica da Guerra Fria. E não eram apenas os países envolvidos diretamente nela que estavam apreensivos com o desenrolar da guerra; nações por todo o mundo tinham seus olhos voltados para o embate, inclusive o Brasil.


Tudo isso se expressava, dentre outras formas, por meio das coberturas jornalísticas do evento. Toda a imprensa mundial acompanhou atentamente cada momento, e diversos periódicos brasileiros cobriram com detalhes todo o conflito. É, portanto, no mínimo curioso que a mais reconhecida reportagem brasileira sobre o Vietnã, Eu Estive na Guerra, não fale tão profundamente sobre os contextos e acontecimentos da Guerra em si. A excelente reputação da matéria publicada em maio de 1968 pela revista Realidade pode atrair interessados pelo conflito que procuram algum tipo de panorama jornalístico da época sobre o evento. Mas, para qualquer um que vai com essa expectativa, o aclamado texto de José Hamilton Ribeiro pode desapontar.

(Primeira página da clássica reportagem / Fonte: Hemeroteca Digital)


Essa característica não é, porém, um defeito. Muito pelo contrário, é um de seus maiores atributos. Uma das sabedorias de José Hamilton na redação de sua matéria está justamente em permitir que a natural quebra de expectativa de sua jornada invada o texto. O repórter - vencedor de 7 prêmios Esso, um por essa reportagem - foi enviado pela Realidade ao Vietnã e, no seu último dia de sua cobertura da guerra, se deparou com o momento mais intenso da viagem: Hamilton pisou em uma mina de terra e teve sua perna esquerda destroçada pela explosão. O que deveria ser os últimos momentos de uma já cansativa viagem se transformam em mais 14 dias de dor e angústia, internado nos hospitais vietnamitas. E é essa mudança radical no seu contexto que converte uma cobertura jornalística comum em um relato íntimo e profundo dessas duas semanas de sofrimento. O repórter vira a reportagem.


Dessa opção pelo subjetivo acaba surgindo um retrato do conflito que é, apesar de indireto, bastante contundente. É por meio dos sentimentos e impressões pessoais de Hamilton que podemos acessar essa imersiva experiência de como era estar no Vietnã naquele tempo e sob essas condições. Um dos momentos que melhor revela isso talvez seja o trecho que narra seu acidente. Hamilton pausa a descrição do cenário de tensão para narrar o que atravessa sua mente no momento em que é lançado ao ar pela explosão de uma mina. Ele imprime no texto um tom sensorial e faz questão de destacar a frase que passa por sua cabeça no momento: "A guerra é de fato emocionante. Agora entendo como há gente que possa gostar da guerra...".

(Hamilton após ser arremessado e ferido pela mina / Keisaburo Shimamoto, 1968 - Reprodução)


É essa disposição do jornalista em compartilhar suas reações inusitadas, sua condição física, suas mudanças de humor e seus pensamentos íntimos que nos conecta ao texto e nos imerge naqueles ambientes pelos quais ele passou. Essa proposta de uma relação mais criativa e honesta entre autor e texto talvez seja o que a torna tão inspiradora e relevante para jovens jornalistas. Nas páginas a seguir, Hamilton relata cada um dos dias que passou internado e expõe os sofrimentos físicos e psicológicos que enfrentou, em contraste com o êxtase do momento da explosão. A emoção da ação que marca a hora de seu acidente imediatamente dá lugar ao horror físico e mental dos graves ferimentos, e é esse horror que o acompanha ao longo dos dias seguintes. Na sua história, Hamilton encontra um tipo de experiência que reflete, de alguma forma, o que incontáveis vidas enfrentaram em maior intensidade ao longos dos vinte anos de guerra no Vietnã.


Mas é claro que, apesar de seu protagonismo inevitável, Hamilton também reserva algum espaço para outros personagens que cruzam sua jornada. Um soldado americano que fala espanhol, um delirante vietcong que canta enquanto agoniza, um jovem vietnamita gravemente ferido que sorri com simpatia enquanto tenta se exercitar, uma criança de 6 anos baleada no pé que, mesmo com os mimos e atenção dos soldados e enfermeiros, tem profundas crises de choro. Ao longo dos relatos de cada dia no hospital - e alguns flashbacks dos dias de cobertura - figuras que marcaram os olhos do jornalista vão parar na matéria e, em suas sutis aparições, acabam adicionando complexidade e humanidade ao retrato do Vietnã que se compõe. É, enfim, um retrato cativante; um que troca contextualizações geopolíticas e descrições táticas pelas observações e percepções de um correspondente de guerra. Pode não abarcar a complexidade política de um conflito como esse, mas enxerga algo muito mais profundo e anterior a isso: o sabor que a guerra tem nos seres humanos por ela afetados. Tanto a adrenalina efêmera de uma explosão quanto a angústia perene do choro de uma criança baleada; é disso que a Guerra é feita, no fim das contas.


A reportagem e a edição completa da revista Realidade em que foi publicada estão disponíveis no acervo da Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/docreader/213659/4055

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