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Democracia sob o perigo das certezas

Rosamaria Santos

Muro separa manifestantes pró e contra impeachment durante julgamento da saída de Dilma Rousseff em Brasília. (Foto: O Globo)


As eleições presidenciais de 2018 dividiram o país de maneira sem igual. Pessoas deixaram grupos de WhatsApp, brigaram e relacionamentos foram rompidos. Os resultados da última plenária duram até hoje. Mas como chegamos a uma situação tão tensa? Como fomos capazes de eleger uma pessoa que só nos ofereceu discurso de ódio? Essas e outras perguntas são respondidas na reportagem Bolsonaro presidente: Qual o possível impacto do 'abismo ideológico' do Brasil no futuro governo de Nathalia Passarinho para a BBC NEWS Brasil. Com dois entrevistados de renome quando o assunto é política na América Latina, a jornalista conduz a conversa extraindo dos seus convidados exatamente o que a população desejava saber. Uma leitura que ensina a narrar histórias complicadas de maneira simples e sucinta, cativando o leitor do lead à última linha.


A matéria é, na verdade, uma entrevista com os professores de ciências políticas de Harvard, Scott Mainwaring, e de Oxford, David Doyle, que explicam como o Brasil chegou ao estado de extremismo político que culminou na eleição de Jair Bolsonaro. Os escândalos de corrupção, as manifestações pró e contra impeachment e a saída de Dilma Rousseff são minuciosamente analisadas​ pelos dois especialistas até chegar às últimas eleições gerais. Eles abordam todos esses tópicos com uma linguagem simplificada e de modo direto. Um texto capaz de promover bons debates entre o público mais engajado com o tema e, ao mesmo tempo, sanar​ as dúvidas de quem não entende muito da área.


Iniciando sua narrativa do fim para o início, Nathalia oferece o panorama do Brasil naquele momento e estabelece, por meio da​ fala de Scott, uma relação com as também acirradas disputas eleitorais de 2014. Apesar da profundidade da trama, os dois conseguem, em apenas alguns parágrafos, explicar o cenário do país, partindo dos quatro anos anteriores. De fato, não seria possível acompanhar o que estava acontecendo naquele momento sem conhecer a história política desta república. Em especial, destacam-se os acontecimentos de 2014, quando o candidato Aécio Neves do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) quase ganhou as eleições, um indicador de que a reputação do PT (Partido dos Trabalhadores) já estava manchada entre a população. É importante frisar o trabalho de Passarinho e de Mainwaring nesse trecho. Enquanto o professor de Harvard fica responsável por destrinchar as ocorrências, a jornalista trata da arte de estruturar o texto de modo que ele fique claro e atraente.

Dilma Rousseff e Aécio Neves durante debate em 2014. (Imagem: Estadão)


Ao se posicionar contrário a generalização do termo “golpistas” para fazer referência a quem apoiou o impeachment, Mainwaring abre espaço para uma discussão mais profunda a respeito dos motivos que levaram a saída de Dilma. Isso força alguns leitores a abandonarem a cômoda visão. Além disso, a opinião acaba se tornando um ponto-chave para manifestar as razões que causaram a deterioração da imagem de grandes partidos de centro e direita, como o PSDB e MDB (Movimento Democrático Brasileiro) que, em outras circunstâncias, seriam uma alternativa ao PT. Com essa explicação, a reportagem se torna mais acessível a diferentes perfis de público. Quem não entendeu a perda de popularidade dessas siglas, por exemplo, não ficou perdido ao acompanhar a entrevista. A preocupação do time em facilitar o entendimento do tema é perceptível ao longo de todo o texto, o que democratiza os debates ao mesmo tempo que amplia o público.


Uma outra estratégia usada na matéria, o paralelo traçado entre o Brasil e outros países latinos, pode ser analisada sob duas perspectivas diferentes. A primeira é que, ao trazer exemplos de diferentes governos populistas, não todos de direita como o de Bolsonaro, Scott e Nathalia assumem o risco de provocar uma reação negativa em alguns leitores. Para aqueles que se posicionam de modo intransitivo na defesa da esquerda, a comparação do professor poderia soar como um absurdo. “Como ele confronta duas formas diferentes de liderar?” poderia pensar o grupo. A questão é que Mainwaring não está preocupado com a gestão do poder nesse momento, mas sim com a forma que os governantes chegaram a ele, geralmente, se aproveitando da insatisfação da população com os jeitos antigos de conduzir uma nação. Dessa forma, os candidatos se lançam como “o novo”, prometendo fazer diferente de tudo que já se viu.


O segundo prisma pelo qual o estratagema pode ser interpretado é a possibilidade de gerar estudo aprofundado sobre a temática. Ao gerar um desconforto com a aproximação entre direita e esquerda, o professor cria a possibilidade do interlocutor observar o mundo para além da visão bilateral. Ele propõe uma análise realística que considera os diversos aspectos das narrativas. Essa forma de interpretar os acontecimentos, que já deveria ser adotada por todos, é a única capaz de possibilitar o entendimento das tomadas de decisões e de seus impactos. A atitude de Mainwaring, assim, impulsiona a capacidade dos leitores de reconhecer semelhanças, diferenças, erros e acertos nas ações políticas. Como resultado, a sociedade pode se estruturar melhor na luta pela manutenção da democracia e dos direitos às​ minorias.


Em mais uma prova de que conhece as organizações políticas latinas, o professor de Harvard se arrisca a dizer que havia uma tendência do novo presidente brasileiro fazer aliança com o centro para conseguir apoio. Algo bem diferente do discurso autoritário de Bolsonaro durante a campanha, no qual defendia a concentração de poder pelo chefe do executivo. Nem se o especialista tivesse dons sobrenaturais poderia dar um palpite tão assertivo. Dois anos após essa reportagem, isso é exatamente o que vemos. Não que o governante tenha abandonado totalmente o tom agressivo, todavia se aliou aos antigos partidos de centro para levar a frente seus projetos e se manter no cargo. Uma parceria que tem salvado o presidente de passar por um processo de impeachment, além de poupá-lo das acusações de corrupção.

Presidente Jair Bolsonaro com deputado federal Arthur Lira (PP), de centro. (Imagem: UOL)


Sem esquecer de nenhum aspecto importante, Scott lembra do perigo que as falas de Bolsonaro representam para a mídia. Uma preocupação justa para um governo que não garante segurança à integridade dos jornalistas e ainda censura o conteúdo que é exibido, seja por aparatos legais ou não. Dois exemplos disso são a ação da juíza Cristina Feijó, que proibiu a emissora Globo de divulgar os documentos da investigação do crime de rachadinhas do qual Flávio Bolsonaro, filho do presidente, é alvo e os “Guardiões de Crivella”, grupo que impedia a imprensa de denunciar a má gestão municipal.


Em suma, Bolsonaro presidente: Qual o possível impacto do 'abismo ideológico' do Brasil no futuro governo é um texto fascinante, bem estruturado e que expõe técnicas inteligentes para explicar o tema abordado e capturar a atenção do leitor. Somado a isso, a matéria ainda fomenta discussões interessantes não apenas sobre a política brasileira, mas também sobre a gestão da América Latina. É impossível chegar ao fim da reportagem sem esbarrar em algum muro ideológico que construímos ao longo das nossas vidas. O mais fascinante de tudo isso é o convite para derrubar essas paredes e ampliar a nossa visão, amadurecendo nossos pensamentos.



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