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“Chico Mendes: Crime e Castigo” e a literatura que fortalece histórias reais

Livro de Zuenir Ventura reúne sua inovadora série de reportagens sobre o assassinato de Chico Mendes

Julia Filgueiras


No dia 22 de dezembro de 1988, morria Chico Mendes - líder sindicalista e ambientalista reconhecido mundialmente por defender pacificamente um modo sustentável de exploração da floresta e a justiça nas relações de trabalho nos seringais. Dias antes de seu falecimento, em uma entrevista ao Jornal do Brasil, declarou que sabia que seria assassinado até o fim do ano, mas que “queria viver para salvar a Amazônia”.

(Chico Mendes no Rio de Janeiro / Imagem: Jornal do Brasil)


Durante a conversa, também relatou: no ano anterior, sua luta havia ganhado grande projeção internacional. Além de receber uma comissão da ONU em sua cidade – Xapuri - Chico viajou aos Estados Unidos para uma reunião no Banco Interamericano de Desenvolvimento, na qual denunciou como a construção sem planejamento da BR 364, financiada pelo BID, degradava a floresta amazônica. Nessa época, foi muito procurado pela imprensa estrangeira, mas, segundo ele, nenhum jornalista brasileiro deu as caras. Apenas com a notícia de sua morte, seu nome passou a ocupar espaço nos jornais nacionais.


É nesse contexto que Zuenir Ventura, já prestigiado e com anos de experiência, partiu para o Acre no início de 1989, para cobrir os desdobramentos do crime que tirou a vida desse líder até então pouco falado em seu próprio país. Chico Mendes: Crime e Castigo, é a reunião das premiadas reportagens concebidas nesse contato do jornalista com Xapuri, um lugar de disputas e vitórias na defesa dos “povos da floresta”. A primeira parte do livro, “O Crime”, se refere a fase de investigações e as impressões de sua primeira viagem, em 1989. A segunda, “O Castigo”, é a cobertura do julgamento dos assassinos, em 1990. A terceira parte, “Quinze anos depois”, mostra a volta de Zuenir ao Acre em 2003 - o que mudou e o que ficou do legado de Chico.


O livro começa com a cena do crime. Dia 22 de dezembro, antes de ser a data do assassinato, foi o dia em que seria transmitida a morte da vilã Odete Roitman, na novela Vale Tudo. Minutos antes da morte de Chico, ele e seus seguranças jogavam dominó, e sua mulher, Ilzamar, preparava a janta apressadamente, para não perder a novela. O “tiro que foi ouvido no mundo todo” foi disparado quando o herói dos povos da floresta terminou a partida e foi tomar banho, do lado de fora da casa. Darly e Darci Alves da Silva, pai e filho, foram os condenados pelo assassinato de Chico Mendes. O pai como mandante, o filho como atirador.


Escrevendo os pensamentos e trejeitos dos personagens dessa história real, a narrativa começa com um relato que só é comprovado bem mais à frente no livro, ao final das investigações. Apesar de se tratarem de reportagens, o jornalista conta os fatos com os recursos da literatura – uma narração onisciente, que contextualiza a notícia em seu cenário social, econômico e territorial a partir da ficção, das impressões e experiências dos personagens. Assim, extrapola a estrutura tradicional da cobertura jornalística, construindo uma narrativa envolvente que não se atém aos acontecimentos, uma narrativa aberta à contestação.

(Capa do livro/ Imagem: Companhia das Letras)


Zuenir é, portanto, parte ativa dos relatos que escreve, não só por complementá-los com uma dose de literatura, mas por se envolver no desenrolar da história. As reportagens mostram, tanto quanto o caso da morte em si, o backstage do trabalho jornalístico. O repórter conta, por exemplo, de como ele e dois colegas, chegando em Xapuri, por sorte deram carona justo ao sargento que comandava a “Operação Chico Mendes” na cidade. Sentindo que ali havia uma oportunidade de arrancar do homem novas informações, os três mentiram suas profissões – o sargento, exibido, os contou então sobre a própria vida e também da dificuldade de perseguir os fugitivos suspeitos de participação, devido à falta de recursos da polícia de lá.


Em outra passagem, o jornalista relata: Darly Alves da Silva é uma pessoa difícil de ser entrevistada. Fala sem parar e nem sempre o que diz faz sentido. Responde o que quer e muitas vezes suas respostas não têm nada a ver com as perguntas. Mas se defende como um animal venenoso, por instinto. Sabe quando está a perigo. No entanto, ao narrar a sofrida entrevista que se segue, Zuenir contribui não só ao entendimento da história do crime, mas à história da cobertura em si. Apresenta um jornalismo do qual o jornalista também é personagem. Um jornalismo que se mistura com o ficcional, identifica narrativas no universo da notícia que, ao contrário do que se espera, ilustram a realidade captada pelo autor muito melhor do que seria com uma exposição “imparcial” dos fatos. “Sem ter uma linha de isenção, conseguia mostrar todos os lados de uma história que, no fundo, tinha um lado só”, como diz Marcos Sá Corrêa no posfácio do livro.


Abandonando a cartilha da imparcialidade, Ventura não deixa de ser honesto ao traçar um perfil detalhado de todas as partes. Assim, o autor não poupa palavras para assumir que mesmo Chico, martirizado, se dedicava muito à militância, mas era cheio de controvérsias – como a bigamia e sua ausência paterna, muito bem desenvolvidas ao longo da obra. O jornalista mesmo assume, sem muitos rodeios, sua posição enquanto moço da “cidade grande”, que olha para tudo aquilo com certo exotismo, de quem na verdade foi surpreendido com a potência política daquelas pessoas “simples” do Norte. Todos os personagens são descritos na lata. Sem medo do “politicamente incorreto”, é assim que o autor se envolve e deixa sua marca na história.

(Zuenir entrevistando Genésio, testemunha-chave que, após o julgamento, viveu sobre a tutela do autor até a maioridade / Imagem: Elson Martins)


Por isso, quando volta em 2003, o jornalista já é um velho conhecido, alguém que havia de fato participado daquela época em que Xapuri era o palco do mundo. Anos depois, a cidade, agora muito mais “evoluída”, se tornou um símbolo do legado de Chico Mendes. Em 2000, foram regulamentadas por lei as Reservas Extrativistas, sua principal bandeira. Seus companheiros de luta, agora ocupam cargos no governo. Em frente à casa onde foi assassinado, o livro de visitas da Fundação Chico Mendes guarda nomes de todo canto do mundo. Tudo em Xapuri apontava para uma ingênua sensação de que o tempo de guerra estava superado.


No entanto, hoje sabemos que a história se desenrolou de outra forma. A reserva extrativista que leva seu nome é uma das áreas mais afetadas pelo desmatamento na Amazônia. Toda a legislação ambiental desenvolvida nas últimas décadas, agora é arriscada pelo desmonte das instituições reguladoras, como o próprio Instituto Chico Mendes (ICMBio). Os conflitos pela terra e a exploração do trabalho continuam. Mais de 30 anos depois de sua morte, as ideias de Chico Mendes precisam ser revisitadas pelo jornalismo mais uma vez.

(Seringueiros a caminho de um “empate” / Imagem: Reprodução)


(Chico Mendes em frente à sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri /Imagem: Reprodução)



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