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Até que ponto conhecemos de fato a doença mais famosa do século?

A partir de sua experiência, Andrew Solomon reconstrói com palavras a depressão severa e os fenômenos desencadeados por ela

Sophia Lyrio


O escritor norte-americano Andrew Solomon foi convidado para a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) em 2014 para discorrer sobre alguns assuntos tematizados pelos seus livros. O estilo do autor se destaca pela sensibilidade que permeia suas obras ao tratar de temas tão delicados. Nesse sentido, é através de uma narrativa emocionante que em seu artigo Anatomy of Melancholy ele traça sua própria batalha contra uma inoportuna inimiga: a depressão. O material faz-se indispensável pela profundidade do relato, em que sua vivência particular somada a sua habilidade profissional torna o texto um ponto fora da curva para a análise jornalística, proporcionando outro olhar sobre uma doença que assola o contexto contemporâneo e, simultaneamente, outro olhar sobre o processo de escrita. O artigo ainda inspira um livro de sucesso, de mesmo título, que se aprofunda nas questões já abordadas.


O autor faz a retomada cronológica dos eventos que se sucederam por meio de curtos períodos, o que cai muito bem. Essa estratégia acelera a leitura, evitando que o texto, apesar de longo, torne-se cansativo. Assim, ele revela todo o processo: como a depressão chegou quando tudo parecia bem, como esvaiu-se de si gradualmente, como perdeu o controle, como se deu o tratamento, as recaídas e, finalmente, como foi quando sentiu-se de volta à vida. Nessa perspectiva, a riqueza de detalhes é o diferencial do artigo, fazendo com que o leitor seja familiarizado a cada fase da doença e, assim, disponha dos meios necessários para se empatizar com ela. No trecho em que Solomon compartilha a crise que o levou a tomar medicamentos, é muito nítida a forma sensível e explícita que ele opta para transpor suas vivências: “Eu me deitei bem parado e pensei em falar, tentando descobrir como movia a minha língua, mas não havia som. Eu tinha esquecido como falar. Então eu comecei a chorar sem lágrimas” (tradução livre).


Na sequência, o escritor segue destrinchando as particularidades do que viveu durante a longa recuperação, sem poupar detalhes. Abordando abertamente situações em que não conseguiu vencer o medo de tomar banho, ou perdeu o controle a ponto de defecar nas roupas e vomitar em si mesmo, o senso comum que banaliza a gravidade da depressão é contraposto, e no lugar é oferecido o retrato verossímil de como ela se manifesta. Outro aspecto para o qual foram dedicados muitos parágrafos no artigo é o mecanismo de funcionamento dos remédios usados no tratamento de quadros depressivos. Solomon combinou conceituações técnicas, opiniões médicas, diversos relatos de pessoas que também passaram por tratamento e sua própria experiência para explicar com profundidade os efeitos desses medicamentos. De modo brilhante, o escritor foca a narrativa em quem travou essa batalha, mas não deixa de usar os conceitos e opiniões médicas como suporte, o que enriquece o texto em termos informativos. Ampliando ainda mais a gama de conhecimentos sobre o assunto, ele discorre, também, sobre tratamentos alternativos como ECT (terapia eletroconvulsiva) e cirurgias cerebrais, por meio do depoimento de amigos que utilizaram esses recursos.


Além disso, cabe analisar a importância dada pelo autor ao carinho e afeto que recebeu durante o período de recuperação. Solomon diz que, apesar de não ter sido a cura, esse suporte foi o seu grande incentivo para melhorar. Nesse sentido, ele recorreu a grupos de apoio para pessoas depressivas durante o período de pesquisa para a construção do artigo, em busca de mais informações de como funcionavam e para colher mais relatos. Apesar de não ter frequentado esse espaço enquanto doente, o autor o descreve como uma ferramenta fundamental, principalmente tendo em vista a dificuldade de compartilhar esse momento com amigos: “Há tanto que não pode ser dito sobre a depressão, que pode ser intuído apenas por outros que vivenciaram isso” (tradução livre). De acordo com essa ideia, Solomon traz ao longo do texto citações de poetas e escritores que também transformaram suas experiências com a depressão em palavra, em uma sacada genial.


O artigo chama atenção para o fato de que o tratamento não é um processo linear. O escritor compartilha em curtos períodos descritores cada fase que vivenciou durante suas recaídas, o que corrobora a ampliação do panorama comum sobre a depressão. Além disso, faz um paralelo interessante com a ansiedade, e usando opiniões de figuras de autoridade no ramo que caracterizam os dois transtornos como “irmãos gêmeos”. Já em outro viés, um aspecto interessante da narrativa é o crítico. Solomon aborda a questão financeira do tratamento, que não é nada barato, o que abre portas para o leitor brasileiro se questionar: como esse processo ocorre no Brasil? Aqui, por meio do Sistema de Único Saúde (SUS), a depressão pode ser tratada nas Unidades Básicas de Saúde ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de forma gratuita. Desse modo, é promovida uma reflexão necessária acerca do quão importante é a atenção para transtornos psíquicos no SUS, assim como o quão importante é a gratuidade dele.


Por fim, o autor promove uma análise acerca da banalização do uso de antidepressivos e, para além disso, ele critica a imposição atual de um modelo ideal de saúde mental. Segundo Solomon, essa padronização impede a resolução dos problemas individuais, interferindo negativamente na saúde mental da população em geral. Ainda, levanta o questionamento: como será a sociedade daqui alguns anos se continuarmos reprimindo com medicamentos nossas emoções negativas? A partir disso, a pertinência de seu texto é, mais uma vez, reiterada. É imprescindível que os jovens - principalmente jornalistas, futuros formadores de opinião - reflitam sobre as questões tão atuais levantadas pelo artigo. Nessa linha de raciocínio, outro ponto de interesse é a forma como uma boa matéria pode se tornar um livro, que pode se tornar um best-seller e, até, um filme, garantindo os preciosos louros ao autor. Em suma, texto faz-se rico não só pela sensibilidade, como também pela informatividade e criticidade. É um material indispensável, que cumpre de modo exemplar a função jornalística: imergir o leitor em um universo real e desconhecido.


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