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A quantia posta fora na guerra às drogas no Rio poderia vacinar toda sua população contra a covid-19

Reportagem do The Intercept Brasil acompanha a primeira rede de pesquisas que ousou calcular o custo bilionário aplicado em uma política pública nitidamente ineficaz

Nathalia Medeiros


(Tropas do Exército no bairro de Anchieta, na zona norte do Rio de Janeiro, durante a intervenção federal de 2018. Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

Se, para algumas pessoas, pouco importa as condições sanitárias precárias, desumanas e antiéticas em que se encontra o sistema prisional no Brasil, muito importa o debate sobre a quantia de orçamento público aplicado nele e o desperdício de dinheiro dos impostos em políticas que não se mostram essencialmente eficazes. A reportagem Rio poderia vacinar toda sua população contra a covid-19 com a grana posta fora na guerra às drogas, escrita pelo jornalista Denis Russo Burgierman para o The Intercept Brasil, relata como a guerra contra às drogas é um exemplo de política cada vez mais dispendiosa, paralelo ao fato de que, desde sua criação, trouxe poucos resultados positivos.


Sabendo que o machismo é intrínseco e cultural na sociedade brasileira, imagine estar nas mãos de uma mulher o ofício de administrar todo o sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro em meados de 1990, durante o governo de Leonel Brizola. É com um pé na história e através desse relato, que o jornalista inicialmente apresenta ao leitor quem era a pertencente à esse tal ofício: a socióloga Julita Lemgruber, que, enquanto mulher num cargo geralmente ocupado por homens, diz lembrar da sensação de não ser genuinamente escutada e de ser tratada “como uma extraterrestre”.


O título já sugere o tema fundamental da reportagem: Dinheiro. Ou melhor: gasto de dinheiro. E foi justamente por meio do debate acerca desse tema que Julita diz ter finalmente conseguido atenção para os problemas prisionais da época. Ao discutir um caso que ela tinha tomado conhecimento, sobre uma mulher que havia furtado dois pacotes de fraldas descartáveis numa farmácia do Rio e que, como consequência, passou dois anos presa, ela percebeu como seus interlocutores se incomodavam com essa história. Não se incomodavam pelos impactos que a prisão poderia causar na autoestima da mulher, muito menos pelas razões que a teriam levado ao ato de furtar aquelas fraldas, mas sim pelo fato de que naquela época, dois anos na cadeia custavam ao estado 20 mil reais, algo em torno de 75 mil reais em dinheiro de hoje (atualizado pelo IPCA, o índice nacional de preços ao consumidor). Gastar na “punição” de quem furtou duas mil vezes o preço do item furtado era realmente a maneira correta de se lidar com o crime? O desperdício financeiro numa intervenção extrema tem efetivamente algum impacto positivo?

Diante dessas questões, surgiu um interesse, até então pouco presente, de se calcular a totalidade dos gastos aplicados no encarceramento e em diversas instâncias, quando se trata da política pública conhecida como “Guerra às Drogas”. A reportagem do The Intercept Brasil investiga a primeira parte de um relatório publicado no final de março de 2021, pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC). O Centro, dirigido pela própria Julita Lemgruber, busca entender e expor à população, quanto custa para o Estado Brasileiro criminalizar o uso e o comércio de certas drogas. Uma criminalização, mediante um conjunto de políticas que além de enormemente custosas de nossos já limitados recursos, desde que os gastos com o combate às drogas começaram a escalar, nos anos 1980, as margens de lucro do tráfico e a violência associada a ele aumentaram exponencialmente.

“Guerra às drogas”. É interessante, inclusive, analisarmos até mesmo o título adotado por essa política pública. Guerra, num sentido etimológico, significa um confronto sujeito a interesses de uma disputa entre dois ou mais grupos distintos de indivíduos. Indivíduos. Portanto, não se pode existir guerra contra às drogas, uma vez que não se faz guerra contra objetos ou substâncias inanimadas, mas sim contra indivíduos. Se esse conjunto de políticas consiste simplesmente na criminalização e na proibição das drogas, ela não condiz com todo o aparato de combate que existe atualmente no Brasil e faz com que estados, como o do Rio de Janeiro, destinem milhões em busca de combater essa suposta ameaça. O processo de tornar securitizado um tema que se apresentou previamente como politizado, faz com que o tema, em vez de fazer parte da política pública do Estado e requeira alguma forma de governança, se apresente como uma ameaça existencial e exija políticas fora dos limites normais de recursos orçamentais.

Nesse sentido, o processo de reconhecimento das drogas como ameaça e perigo ao Estado define intuitivamente quem deve ser protegido e quem deve ser vitimado para que a ameaça seja eliminada. E ao decretar que uma parcela da sociedade deve ser protegida, as consequências deste “decreto” vão refletir na desproteção de outra parcela, concentrada em determinados grupos étnico-sociais menos favorecidos. Logo, a Guerra às Drogas, na verdade, serve para criminalizar determinados grupos sociais em detrimento de outros. Se as drogas são uma questão que ameaça a sociedade como um todo, não fazendo distinção de gênero, raça ou cor, como fazer com que certos grupos sejam socialmente combatidos enquanto outros são absolvidos? A partir da promoção da guerra às drogas e da boa construção do discurso jurídico que sustenta a existência dessa tal ameaça, e que estereotipa o “criminoso”, a “vítima”, o “bem” e o “mal”, organiza-se uma profunda repressão não somente às drogas, mas também àqueles grupos automaticamente associados a elas.

O jornalista Denis Russo, autor da reportagem, se concentra nos dados do relatório publicado pelo CESEC, que por enquanto se limitou a dois estados, São Paulo e Rio, para abordar sobre os custos abusivos dessa política. Segundo os dados, para manter a proibição das drogas, o sistema de justiça brasileiro gasta com polícia, justiça e detenção, o valor de 5,2 bilhões de reais ao longo de um ano. Para ter uma noção rasa do quanto esse valor significa, São Paulo, se dedicasse o dinheiro a outro fim, poderia ter mantido 43 mil novos alunos na USP, o que aumentaria em mais de 70% a quantidade de pessoas com um diploma superior no estado, e o Rio, além de poder construir 121 novas escolas com o que gastou com a guerra, poderia até mesmo vacinar toda sua população contra a covid-19.

O Centro de Estudos dirigido por Julita, entrevistou mais de 100 policiais militares dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Ao questioná-los sobre uma estimativa do tempo que eles acreditavam depositar somente no combate às drogas, disseram que ele toma algo em torno de um terço (em São Paulo) e metade (no Rio) dos seus dias de trabalho. Isso faz com que nos sintamos obrigados a refletir sobre a quantidade de crimes sem solução que poderiam estar sendo investigados, evitados e resolvidos, tendo em vista que no Rio de Janeiro, por exemplo, apenas 11% dos homicídios são solucionados. Difícil esperar algo diferente se a polícia gasta metade - ou mais - do seu tempo numa política sem eficácia.

A leitura dessa reportagem é recomendada e essencial para que se compreenda, que por mais plausíveis que sejam os argumentos morais de defesa dessa política pública, em um sentido financeiro e de eficácia estatística, ela precisa ser analisada e reformulada.


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