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“A Nova Secessão Americana” da Revista Piauí e a polarização como um mal necessário

Bernardo Bruno


No dia 3 de novembro deste ano, ocorreu uma das mais importantes e polarizadas eleições norte-americanas de todos os tempos. A eleição entre Joe Biden, do partido Democrata e Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, filiado ao partido Republicano, registrou um número recorde de votações populares no país. No dia que este texto foi escrito (11 de novembro), a apuração ainda estava em atividade, mas Joe Biden e Kamala Harris, a primeira vice-presidente mulher e negra, já conquistaram a vitória democrata. No entanto, a pergunta que fica é: como será o governo do novo presidente eleito na prática? Longe das promessas eleitorais ideais, a prática pode ser muito mais difícil e desafiadora.


É com o objetivo de nos fazer refletir sobre os desafios de um governo federal em um país polarizado que Oliver Stuenkel escreveu o artigo “A Nova Secessão Americana”. O professor de relações internacionais da FGV escreveu a matéria para a Revista Piauí no dia 4 de novembro, antes de o novo presidente ser definido, mas já formulando alguns pensamentos sobre o governo que se iniciará em 2021. Segundo Stuenkel, independente de ser Trump ou Biden ocupando a Casa Branca, o próximo mandato presidencial será conturbado: “Quem quer que consiga tomar posse da Casa Branca a partir do dia 20 de janeiro de 2021 enfrentará a missão quase impossível de governar um país à beira da ingovernabilidade. Um país cindido ao meio em todas as instâncias de poder.”


(O democrata Joe Biden à esquerda e o republicano Donald Trump à direita / Imagem: O Globo)


Oliver Stuenkel é doutor em Ciência Política pela Universidade de Duisburg-Essen na Alemanha, mestre em Políticas Públicas por Harvard e já escreveu diversos livros sobre política, ou seja, é uma grande autoridade no assunto e propõe diversos questionamentos inovadores para uma discussão já tão abordada, como a polarização. O especialista expõe a fragilidade de certos personagens da democracia americana, como a Constituição e o sistema eleitoral que, para Stuenkel, são anacrônicos e ultrapassados. Nessa perspectiva, o tratamento da Constituição de 1787 como uma “escritura sagrada” não permite a mudança de diversos tópicos essenciais para uma democracia americana menos frágil.


Além disso, o acadêmico se baseia nos estudos de Ivan Krastev para sustentar suas teorias sobre o extremismo político. O cientista político búlgaro diferencia a “democracia de cidadãos” de uma “democracia de torcedores”, na primeira existe uma colaboração entre esquerda e direita em prol dos interesses da nação. Na segunda, existe uma verdadeira “arena política”, não há mais espaço para concessões e o seu opositor é um inimigo que toda eleição precisa ser derrotado. Para o especialista em relações internacionais, isso se aplica perfeitamente ao contexto estadunidense: “A retórica digna de torcedores que se abateu tanto sobre os republicanos quanto sobre os democratas reflete essa nova realidade da arena política. Segundo esse raciocínio, a vitória do outro lado representa nada menos que o fim da nação.”


Em um sentido factual e informativo, “A Nova Secessão Americana” é um grande artigo jornalístico. Escrita por um autor experiente no assunto e repleta de exemplos presentes na nossa realidade, como “esse ambiente de Fla-Flu”, o texto traz certos conhecimentos acadêmicos da realidade norte-americana para a realidade brasileira. É impossível ler a matéria da Piauí sem fazer conexões com nossa frágil realidade política à beira de eleições municipais. Além disso, Stuenkel conecta a disputa Trump-Biden com diversos exemplos históricos, como a Guerra Civil Americana (ou Guerra de Secessão) e a disputa de Al Gore e Bush em 2000. Essas contextualizações deixam o artigo mais informativo, nos conectam com a história norte-americana e seu sistema democrático.


No entanto, eu discordo do autor em um sentido ideológico. Por mais arrogante que seja um estudante de Jornalismo de primeiro período confrontar um doutor em Ciência Política de 38 anos, acho que a juventude permite que cometamos esses atos emocionados mesmo. Fica claro no texto uma intenção de Oliver Stuenkel de contestar o sistema político americano e, principalmente, as pretensões republicanas e eu concordo completamente com o professor da FGV nesses pontos. No entanto, acho que por vezes o redator da Piauí abre espaço para um discurso mais centrista, que não faz muito sentido no mundo polarizado em que eu cresci.


Eu cresci na geração da “arena política”, da “democracia de torcedores” e me identifico como um “torcedor” dos meus ideais. Caso fosse norte-americano, eu faria de tudo para combater os Republicanos, partido esse que nasceu da escravidão, da misoginia e da exploração. Nos Estados Unidos a disputa não é entre direita e esquerda, mas da extrema-direita contra o centro ou, até, centro-direita . As eleições de 2020 não podem ser vistas como um simples confronto entre partidos, mas sim como uma disputa contra o neofascismo e, nesse sentido, a eleição de Biden é insuficientemente radical. Tanto ele como Kamala Harris tentaram ao máximo atingir uma frente mais ampla possível, ambos têm carreiras marcadas por concessões, alianças e até decisões de direita, como o encarceramento em massa de negros por parte de Harris.


Nesse contexto, é compreensível que a maioria das críticas da matéria a respeito dessa polarização sejam direcionadas a Trump e aos republicanos, mas esse mesmo argumento pode ser e é utilizado contra a oposição democrata e a esquerda brasileira. O colunista estabelece a questão do bipartisanship — a cooperação entre esquerda e direita — como algo positivo para a democracia na visão dele, mas isso soa como um posicionamento “isentão”. Perdão pela expressão que, apesar de vulgar, é a única possível nesse contexto. Existem pautas inconciliáveis, ainda mais se pensarmos no Partido Republicano, um partido de extrema-direita que até hoje tem como fundamento uma ideologia do ódio e repressão.


Stuenkel elogia a “democracia de cidadãos” e o gesto de Al Gore, permitindo a eleição de Bush e o fim da recontagem de votos. Mas o que esse gesto “em prol da nação” trouxe? O próprio Oliver Stuenkel responde: “Bush acabou sendo um presidente inapto, que liderou duas intervenções militares desastrosas e presidiu a pior crise financeira após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, não enfrentou qualquer questionamento da sua legitimidade na Presidência.” Olha, eu preferia que tivesse enfrentado questionamentos.


A própria terminologia de Krastev, pensador usado como base teórica para o texto, já tem uma “aura depreciativa”: aquele que concilia e concorda com o opositor é um cidadão, um verdadeiro eleitor pensando na democracia. Aquele que é mais radical e questiona a oposição e escolhe seu próprio interesse é um mero torcedor, nem cidadão ele tem direito de ser, está mais para uma “marionete cega pela ideologia”. Eu discordo. Se for pra ser cidadão de um país imperialista, genocida e predador, prefiro ser torcedor. Temos que parar de demonizar a polarização quando ela é necessária.


O filósofo e cientista social esloveno Slavoj Žižek comenta há alguns anos muito fortemente sobre essas questões: “O que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os “compromissos necessários” com o inimigo declarado”. O pensador esloveno em conjunto com o filósofo francês Jacques Rancière, inclusive, foram responsáveis por dar nome a alguns dos conceitos mais comuns na política atual, como a pós-política. Seria um fenômeno da despolitização, que surge dos cidadãos estarem cansados da polarização e pensarem que a solução é a moderação e o problema a ideologia. Nesse sentido, o político ideal seria o tecnocrata, o gestor “nem de esquerda, nem de direita” capaz de unir os extremos e levar o país ao progresso. Parece bonito, mas ainda espero pelo dia que a Tábata Amaral e o João Dória unam o país.


Na prática, esses políticos acabam representando as elites neoliberais e seus interesses e não acabam fazendo mudanças estruturais necessárias, assim como os outros políticos. Então a resposta ainda é o dito “centro”? O escritor não dá respostas à questão da polarização e nem diz apoiar uma visão mais moderada, inclusive são claras as motivações de denúncia a Trump e à extrema-direita no artigo, mas o debate central do professor claramente condena a polarização.


Mas condena sem gritar opiniões ou posicionamentos, sinto falta de uma mão mais firme na escrita de Stuenkel. A Piauí é uma revista que se beneficia e abre espaço para opiniões bem articuladas e claras. Mas “A Nova Secessão Americana” prefere se disfarçar de um texto crítico, porém informativo que não toma lados, enquanto claramente tenta convencer o leitor do seu ponto de vista. O professor da FGV não se arrisca com opiniões mais ácidas ou fora do senso comum, um pouco de “falta de moderação” faria com que o texto “saísse de cima do muro”.


No final das contas, o artigo da Piauí acaba sendo bem recomendável para os interessados na política, mesmo para quem discorda de vários posicionamentos do autor, como eu. O jornalista tem uma linguagem clara que prende a atenção do leitor e sustenta suas opiniões com uma base teórica, o que ainda é raro apesar de ser o mínimo. A matéria termina com o autor, ainda sem saber quem iria assumir a presidência, afirmando que os Estados Unidos sofrerão com um país ingovernável. Quem sabe talvez isso seja uma etapa necessária para a tão importante nova secessão americana. Secessão essa de todos os valores dos confederados, da Ku Klux Klan e do imperialismo voraz que ainda perduram na maior potência mundial. Eu prefiro pensar que a mudança virá da polarização e do confronto necessário com um extremo tão devastador. Em defesa à “democracia de torcida.”


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