vetlana Aleksiévitch contou a história da Segunda Guerra Mundial a partir da perspectiva feminina
Luísa Rech
(Capa do livro na edição da Companhia das Letras / Imagem: Reprodução)
A guerra não tem rosto de mulher (Companhia das Letras, 2017), de Svetlana Aleksiévitch, é o primeiro livro da jornalista russa vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015. Publicado em 1983, o livro reúne relatos de mulheres que integraram o Exército da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. A obra inclui cerca de 500 entrevistas de franco-atiradoras, médicas, telefonistas, enfermeiras, pilotos, tanquistas e tantas outras mulheres que desafiaram a vontade de suas famílias e ocuparam no Exército Vermelho lugares e postos antes apenas destinados a homens.
A guerra sempre foi um assunto que transmitiu fortes emoções aos russos. A tão famosa “vitória” na Segunda Guerra Mundial, também conhecida entre eles como A Grande Guerra, sempre fora envolta por um ar praticamente mitológico - os soldados, heróis admirados, e suas condecorações, respeitadas. A história desses anos de guerra, marcada pelo sofrimento das famílias e dos soldados, com o passar do tempo se transformou no relato de sucesso da União Soviética no confronto.
Com o objetivo de reproduzir uma outra visão da história, Svetlana Aleksiévitch aborda a guerra na perspectiva das mulheres. Ela conta que nunca se interessou sobre a versão da Vitória tão contada e idolatrada pelos homens de sua infância. Muito pelo contrário, ela queria se aprofundar nas partes da guerra que pareciam mais irrelevantes para os homens. A rotina das pessoas comuns, o sentimento que envolvia a todos, e, principalmente, às mulheres: “A guerra delas tem cheiro, cor, o mundo detalhado da existência”.
Passados muitos anos da guerra, Svetlana entrevistou mulheres que integraram o Exército soviético e percebeu que os sentimentos presentes em seus relatos iam além dos fatos contados em livros de história. As mulheres depositaram neste mundo de guerra todas as suas lembranças neste mundo, tudo de si. Aquilo que viveram, que leram, que sentiram e viram. E a autora se responsabiliza em contar este lado da história soviética. É a partir desses relatos que é possível aprender sobre a real situação das pessoas em época de guerra. A escritora diz que buscou a história dos seres humanos, que, segundo ela, foram arrancados da vida comum e jogados em um acontecimento enorme, não se tratando mais de apenas uma guerra ou do Estado. O discurso masculino, por parte dos considerados heróis da história, conta de acontecimentos heróicos, mortes, vitórias e derrotas, ação e estratégias. Eles nunca quiseram demonstrar fraqueza, hesitação ou sofrimento. Já para as mulheres, a guerra é sofrer, é sentimento.
(Imagem: Reprodução)
Mulheres idosas, entrevistadas em suas casas, relembraram sua adolescência e a força de vontade que as rodeava. Influenciadas pela intensa propaganda de Estado, o primeiro desafio foi contradizer a vontade de seus pais para poderem se alistar. Depois, das chefias nos centros de alistamento. Já no front, eram desacreditadas e ninguém acreditava em suas habilidades. E assim elas vão relatando como se surpreenderam em certos momentos, como quando ganharam medalhas por bravura e como se emocionaram ao serem reconhecidas por seu trabalho.
“O que se criou em nossa alma, o tipo de pessoa que éramos na época, nunca mais vai existir. Nunca! Tão inocentes de tão sinceras. Com tamanha fé! Quando nosso comandante recebeu o estandarte e deu a ordem 'Regimento, sob o estandarte! De joelhos!’, todas nos sentimos felizes. Pareceu-nos uma prova de confiança, agora éramos um regimento como todos os outros: de tanques, de artilharia.” - Maria Semiónovna Kaliberdá, primeiro-sargento, comunicações.
Um dos assuntos mais abordados no livro e nos relatos das mulheres é a relação das pessoas com a morte. Muitas ainda não tinham visto uma pessoa morta ou qualquer ocasião que resultasse em uma tragédia. O choque de ver alguém caído em campo de batalha e não poder ajudar, de ter que arrastar soldados com fardas e armas pesadas para tentar tratar seus ferimentos ou de ter que realizar operações médicas de risco, como uma amputação, era perturbador. Uma comandante de fuzileiros expõe que, na guerra, depois de assistir tantas perdas, as pessoas passam a sentir uma apatia em relação à morte. Todos se tornam meio humanos e meio animais, pois de outra forma não era possível sobreviver. A apatia ajudava a resistir às catástrofes, à fome, à sujeira e às doenças. Ela ajudava a focar no que era realmente importante, a vitória.
Aquela geração soviética acreditava que havia coisas maiores que a vida humana. A maioria dos soldados acreditava na ideia de que estavam lutando em nome da sua pátria. Eles davam o máximo de si por seu país e, principalmente, por Stalin, líder político máximo da União Soviética, responsável por comandar a URSS de 1924 a 1953. A União Soviética investiu de forma pesada em uma propaganda agressiva contra o nazismo e que convocava a população a lutar, e seu maior objetivo era elevar o moral das tropas e manter ativo o espírito de embate tanto dos soldados que lutavam diretamente na linha de combate, quanto da população civil. As pessoas, assim, se sentiam na obrigação de representar seu país com a maior bravura
(Imagem: Reprodução)
Influenciadas por essa propaganda, mulheres entraram no Exército dispostas a batalhar e eram vistas como irmãs por seus colegas homens. A partir de um relato feito por um homem à autora, é possível observar como a imagem das mulheres envolvidas em batalha era distorcida pelos soldados. Antes, eles as viam como mulheres puras, “direitas”- pelo menos a maioria - mas depois da guerra elas perdiam seu encanto. “Depois da sujeira, depois dos piolhos, depois das mortes... A gente queria algo bonito. Claro. Mulheres bonitas... Tentávamos esquecer a guerra. E também esquecíamos das nossas meninas.”
Os homens perderam seu encanto pelas mulheres que estiveram em combate e criaram uma nova imagem delas. Por outro lado, elas também voltavam da guerra com visões diferentes de si. Ficaram anos de sua vida não se sentindo mulheres, usando cuecas, botas e calças, algo que não era comum para a época. Muitas delas relataram a surpresa e a dor que surgiram ao cortarem as suas tranças e adotarem um corte masculino. Elas se tornaram mais um em milhares, não tinham nem identidade própria, quem dirá consciência de sua feminilidade. E quando receberam roupas femininas, como saias, calcinhas e sutiãs, pela primeira vez em anos, perto da Vitória, não puderam deixar de se emocionar ao lembrarem de como a vida era antes de tudo, antes de se transformarem em uma arma do Estado Soviético.
Svetlana Aleksiévitch foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2015 e se tornou uma entre 14 mulheres a receber a honraria em 121 anos de história da premiação. Foi reconhecida pelo prêmio por ter criado um “novo gênero literário”e escrito um livro- reportagem que segue uma construção diferente dos demais, pois se preocupa em narrar as emoções das pessoas em guerra e não apenas os eventos em si. Seu texto valoriza testemunhos diretos que relatam com minúcia todos os sentimentos das mulheres entrevistadas, permitindo que o leitor conheça um lado diferente do que geralmente é tratado nos livros usuais de história. Relatos que sofreram censura por muitos anos e que não falam somente de guerra, mas do ser humano no lugar do soldado.
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