Maria Luise Brey
A reportagem investigativa sobre o caso da Praia dos Ossos foi idealizada diferente do que costumávamos ver, sendo produzida inteiramente para o formato de podcast. Desde janeiro de 2019, a equipe da Rádio Novelo 一 uma produtora de podcasts do Rio de Janeiro 一 em parceria com a Revista Piauí, produziram 80 horas de material gravado e mais de 50 entrevistas.
Imagem: Reprodução/ Logo Oficial
A minissérie original conta a história do assassinato de Ângela Diniz, que foi morta no dia 30 de dezembro de 1976 pelo seu namorado, Doca Street, que atirou quatro vezes contra a mulher de 32 anos, na Praia dos Ossos, em Búzios.
O podcast é dividido em oito episódios de aproximadamente uma hora, nos quais relatam desde o julgamento e o desfecho da história até a vida da vítima e do réu. Todos os episódios tem um ar de série documental, devido a caracterização do local e dos acontecimentos que Branca Vianna, a apresentadora e idealizadora do projeto, faz durante suas falas. Um exemplo é a sobreposição da fala da Branca enquanto anda até chegar a residência, com o som do mar que há perto da casa do crime. É possível notar os recursos sonoros inseridos, que como dito antes, nos remete ao estilo de documentário que já conhecemos, mas agora, sem o recurso visual. O podcast brinca com sonoras de rádio e jornal, isso quando havia, e para driblar a falta desse material ainda foi contratado um narrador para ler em voz alta as manchetes dos jornais. Também vale dizer que a qualidade dos áudios, tanto do estúdio como das entrevistas, está impecável, mantendo o volume e a nitidez uniformes durante todo o tempo, mesmo com a variação de cenários e entrevistados.
Imagem: Flora Thomson-DeVeaux/Arquivo pessoal
A ideia para a criação do podcast surgiu de Branca, que tinha 14 anos na época do crime e relata um pouco, no primeiro episódio, sobre como esse caso em específico chamou sua atenção depois de quarenta anos: “E eu não tinha, como aliás continuo não tendo, nenhum interesse especial por histórias policiais. E muito menos por coluna de fofoca. O crime ficou famoso porque as pessoas envolvidas eram de coluna social. Mas não foi isso que me chamou a atenção. Esse caso virou um divisor de águas na vida de muitas mulheres. E foi por isso que eu quis voltar a ele, mais de quarenta anos depois. Essa não é só uma história de coluna social. Mas não deixa de ser uma história sobre a imprensa. A história é também sobre o sistema judiciário brasileiro. Sobre como nasce uma mobilização. Sobre como as mulheres viviam e morriam neste país. E como elas continuam vivendo e morrendo. Essa é a história de uma mulher, da morte dela, e de tudo o que veio depois”.
O trabalho de investigação jornalística feito foi incrível, e a cronologia posta na explicação fez com que facilitasse o entendimento do ouvinte sobre um caso antigo. Mas, para além da estrutura técnica do podcast, é preciso falar sobre o tema que ele retrata: o crime da Praia dos Ossos.
Ângela Diniz, uma socialite do Rio de Janeiro, foi morta pelo seu namorado, Doca Street, em 1976. Na noite do crime, Ângela havia terminado com Doca e o mandado embora de sua casa, após aguentar alguns meses de um relacionamento abusivo e tóxico, regado a ciúmes, brigas e agressões. O homem não aceitou o término do relacionamento, voltou para a casa, sacou a arma da bolsa e atirou três vezes na cabeça da moça e uma na nuca. Street foi embora, deixando a vítima morta na casa, e se manteve escondido por um tempo.
Mas o que tanto choca nesse caso não é a terrível morte de Ângela, e sim como se deu o desdobramento dele: a transformação popular do réu em vítima, e a tentativa de culpar Ângela e justificar o crime de Doca. No podcast, ainda citam que surgiram camisetas com o rosto de Doca, pratos especiais em sua homenagem, como o “filé Doca Street” e até um drink com seu nome que era servido com quatro bolinhas no copo, remetendo as quatro balas que mataram Ângela.
Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux resgataram um texto da época, de uma coluna do Jornal dos Sports da jornalista Cidinha Campos, que diz: "No começo, Ângela Diniz era a vítima. Quinze dias depois virou o barco. Doca [...] passou a ser a vítima. É aplaudido pelo povo, virou mito. As mulheres já estremecem pelo coração de Doca. E foi Ângela quem foi assassinada, não sei se vocês se lembram. Em menos de um mês, ela foi promovida de mulher mais sexy a 'sapatão'. Eu não vou estranhar se, no final do julgamento, Doca seja condenado a pagar uma pequena multa apenas por ter caçado uma pantera fora da estação.”
O desdobramento do julgamento de Doca foi histórico, contendo mais de 100 jornalistas de emissoras de televisão diferentes para cobrir o evento, e diversas rádios locais transmitindo simultaneamente. Pessoas acamparam na frente do tribunal para conseguir um lugar. Branca diz que “na hora do julgamento, o tumulto mais parecia uma final de Brasileirão, com torcida e tudo. E a torcida do Doca tinha feito cartazes: ‘Cabo Frio está com você’, ‘O povo de Cabo Frio te absolve’. Além da grandiosidade que o caso tinha tomado, duas figuras importantes para o Direito Criminal estrelaram no tribunal: Evandro Lins e Silva, na defesa; e Evaristo de Moraes e Filho, na acusação. “Os jornais chamavam o encontro de “duelo de titãs”.
O julgamento durou 21 horas, e embora Doca fosse réu confesso, Ângela também acabou sendo julgada. “Terminado o julgamento, a opinião pública ficou consciente de que Ângela Diniz foi condenada moralmente, e Doca, o galã, muito embora tecnicamente condenado, também moralmente fora absolvido.”
Na época, o caso causou revolta em diversas pessoas, principalmente para Hildete Pereira de Melo e Jacqueline Pitanguy, que haviam fundado um pequeno núcleo feminista que funcionava como uma espécie de grupo para reflexões. Hildete relata que aquele julgamento serviu para dizer para as mulheres se comportarem, pois segundo as leis elas deviam continuar submissas aos seus maridos e namorados.
Jacqueline Pitanguy lê no podcast um trecho do manifesto contra o machismo na sociedade brasileira que seu núcleo feminista havia criado: “Queremos falar do caso Doca como símbolo do machismo na sociedade brasileira. Vemos no caso Doca Street um julgamento não só de Ângela Diniz, mas de todas as mulheres que, de algum modo, fogem ao modelo de comportamento prescrito para o sexo feminino. O julgamento de Doca expressa a maneira pela qual a sociedade brasileira resolve as relações de poder entre os sexos: o sexo masculino, aqui representado pelo senhor Raul Fernando de Amaral Street, pode impunemente punir uma mulher que não corresponde ao seu papel tradicional. Queremos deixar claro nossa revolta e indignação”.
O caso da Praia dos Ossos e a morte da “Pantera de Minas”, apelido de Ângela, foi uma sentença para todas as mulheres que assim como ela, eram livres para seguir o rumo que quisessem. Vale ressaltar que a imprensa também teve um papel muito importante nesse caso, reproduzindo diversas matérias extremamente machistas, como foi relatado pelo podcast.
A produção do podcast e de toda a pesquisa jornalística foi tão bem feita, que repercutiu e deu uma grande visibilidade para a Rádio Novelo. Ela até foi chamada pela Folha de São Paulo, como talvez, “a maior especialista no formato atualmente”. O podcast resgatou e documentou com maestria um caso de 1976, inovando na maneira de se fazer uma investigação jornalística. Foi criado ainda um site só para o podcast, contando com imagens citadas em cada episódio e com a transcrição dos áudios.
“Ela morreu duas vezes. Porque ela morreu quando o Doca a assassinou, e ela morreu no primeiro julgamento. Porque foi ela que foi julgada, foi a Ângela que foi julgada. Porque uma mulher como ela não traz simpatia. As pessoas não gostam de uma mulher bonita demais, sedutora demais, livre demais. Então ameaça! Ameaça mulheres, ameaça homens”, desabafou Jacqueline Pitanguy, amiga de infância de Ângela, sobre o crime cometido contra a “Pantera de Minas”.
Você pode escutar o Praia dos Ossos no Spotify ou em qualquer aplicativo para podcast ou no site da Rádio Novelo.
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