O adeus a um dos nomes mais emblemáticos da cultura brasileira e a dívida do país com suas principais figuras
Pedro Guevara
Imagem: Reprodução
Sempre que o Brasil perde uma voz na luta pela construção do projeto de nação igualitária, coerente e com memória histórica, aumenta a nossa dívida, como sociedade, com os que nos deixaram. Foi assim com Abdias do Nascimento. Foi assim com Elza Soares. Foi assim com tantos e tantas. Assim também será com Milton Gonçalves.
Para além do momento de homenagens, existe a dor de perder alguém que, no cinema ou na TV, mostrou nas telas que era possível acreditar. Para além da dor, é necessário consolidar o entendimento do dever de um dia encontrar o país que nunca existiu – o país pelo qual ele lutou ao longo de suas quase nove décadas de vida – e entregá-lo aos tantos Miltons ocultos na população brasileira.
Das páginas aos palcos, das reuniões aos comícios, a luta a favor da cultura e da justiça social sempre esteve presente na trajetória de Milton Gonçalves. Na arte, veio através da atuação em papéis respeitáveis – o negro também poderia ser advogado, pai de família, usar terno e gravata, estar em papéis de destaque. Na política, foi por meio da participação ativa no movimento das Diretas Já e pela candidatura ao governo do Rio, sempre buscando combater as mazelas da nação.
Da participação ativa nas Diretas Já à filiação ao MDB: a ação política para além das telas (Imagem: Reprodução)
Numa entrevista a Jô Soares, ele contou: "Eu cumpro com aquilo que na minha vida tenho lutado, que é a inserção sem humilhação". Tal frase é simbólica na história do jovem que com papéis memoráveis colocou, como o próprio sempre fazia questão dizer, “um brasileiro, negro, descendente de africanos” nos holofotes da dramaturgia nacional.
A emoção ao lembrar dos tempos com os amigos no Teatro de Arena, a histórica atuação em “Rainha Diaba” – que lhe rendeu quatro prêmios cinematográficos –, as memórias com Luís Carlos Prestes, o sonho de ampliar a representatividade política; assistindo às entrevistas de Milton Gonçalves é possível ter a dimensão da pluralidade e da grandeza daquele que foi um dos maiores artistas da história do país.
“Rainha Diaba”, um divisor de águas na história da dramaturgia nacional (Imagem: Reprodução)
Os sonhos do menino de Monte Santo ainda parecem distantes. Não chegou a ver o “presidente negro” que queria, muito menos o país pelo qual lutou por toda a vida. Que um dia a pátria de um dos maiores de todos os brasileiros seja aquela que ele sempre sonhou: a que cuide de seus filhos, não esqueça seu passado e honre seus verdadeiros heróis. E entregue aos pequenos Miltons, Elzas e Abdias o direito de sonhar. Um Brasil que (ainda) não está no retrato.
Ficarão conosco o sorriso inconfundível do artista genial, a maestria com as palavras e a sabedoria de um autêntico orixá da nação. Também ficam a saudade perpétua, o coração enlutado e a gratidão de um país. Para a eternidade, Milton Gonçalves.
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