Ex-editor da revista National Geographic, Rick Gore relembra viagem ao Extremo
Oeste do gigante asiático durante reabertura do país para o mundo
Alexandre Caetano
Brinquedos exibidos numa vitrine seduzem um menino chinês. Crédito: National Geographic.
Um garotinho, de mais ou menos sete anos, passa diante de uma loja de departamentos. Na vitrine, um sedutor conjunto de brinquedos o hipnotiza – enquanto o adulto que o conduz pela mão continua caminhando indiferente, o menino mantém o olhar fixo nos objetos, com uma expressão entre fascinada e desiludida.
Essa cena, que se passou em Pequim, capital da China, em 1979, foi eternizada num clique de Bruce Dale. A foto foi incluída na edição de março de 1980 da revista National Geographic (vol. 157, no. 3, Estados Unidos), numa extensa reportagem intitulada “Journey to China’s Far West” (“Viagem ao Extremo Oeste da China”), escrita por Rick Gore. Uma legenda nos ajuda a dimensionar o simbolismo histórico da imagem: "Chamando a atenção de um jovem transeunte, brinquedos exibidos numa loja de departamentos de Beijing sinalizam uma nova postura do governo em relação a bens de consumo. Em contraste com balizas ideológicas rígidas, políticas mais moderadas – incluindo incentivos à iniciativa individual – têm como objetivo catapultar a China ao ranque das nações desenvolvidas por volta do ano 2000”.
Foto de uma família de uigures abre a reportagem. Crédito: National Geographic.
Ao mencionar “balizas ideológicas rígidas”, o texto faz referência à Revolução Cultural Chinesa, liderada por Mao Tsé-Tung. Esse movimento, que se estendeu de 1966 a 1976, se concentrou em combater tudo o que fosse classificado como uma ameaça ao projeto socialista implementado no país em 1949. Nessa fase do processo revolucionário, marcada por uma intensa turbulência política e social, o país manteve suas portas fechadas para uma grande parcela do mundo – em especial para o Ocidente.
À época em que a foto foi tirada, no fim da década de 1970, a China já embarcava num processo de reabertura política, econômica e cultural. Foi em parte graças às transformações levadas a cabo a partir desse período que o país passou a ocupar um lugar de grande relevância e influência no cenário geopolítico contemporâneo.
Bruce e Rick, os repórteres da NatGeo, visitaram o gigante asiático nesse complexo contexto de reabertura. “Eu sabia que entraríamos numa situação restritiva e precisaríamos nos esforçar para ter acesso à vida cotidiana na China”, comenta Rick sobre o processo de produção da matéria, em entrevista ao Pitacos por e-mail.
Por influência da postura isolacionista adotada pelo Partido Comunista Chinês (PCC) desde o fim dos anos 1940, a Embaixada Chinesa nos Estados Unidos resistiu por anos à ideia de autorizar o acesso de uma equipe de jornalistas americanos ao país. Rick relembra que a NatGeo fez inúmeras solicitações ao longo dos anos, das quais nenhuma foi atendida. Até que a revista resolveu propor ao governo um intercâmbio acadêmico sobre ciência do deserto – o tema tinha inspirado um artigo que Rick havia começado a escrever.
Grades de palha sendo usadas para conter o avanço das dunas. Crédito: National Geographic.
Para a surpresa de toda a equipe, a ideia foi aceita. Por trás disso estava o fato de que, naquele período, o PCC estava particularmente empenhado em conter a desertificação de vastas regiões do território chinês, em especial no Oeste. “Cerca de um ano depois da proposta, recebemos um convite inesperado: enviar ao país um jornalista e um fotógrafo, junto a uma delegação de seis cientistas com especialização em desertos”, recapitula Rick.
Escrevendo a história
O tom adotado em boa parte do texto é, mais do que intimista, honesto. Rick revela para quem lê quais são suas expectativas e frustrações, bem como suas limitações. Ele deixa claro que o interesse de seus anfitriões é mais científico do que jornalístico – o que faz com que ele e Bruce em alguma medida fiquem deslocados na delegação. A agenda do grupo estava repleta de palestras e outros eventos acadêmicos, o que de certa forma manteve os jornalistas longe do que mais lhes interessava: a vida comum e corrente na China.
Essas limitações parecem contribuir para que Rick volte para o seu entorno um olhar particularmente atento. Nem a menor das trivialidades escapa ao repórter, que chama atenção para a temperatura em que a cerveja é servida, a forma como os hóspedes do hotel onde está hospedado em Pequim interagem entre si, os cartazes de propaganda política com os quais se depara, o que escuta nos alto-falantes, e por aí vai.
Um grupo de trabalhadores levanta montes de feno. Crédito: National Geographic.
À medida que a viagem se desenrola, “entre eventos de boas-vindas e conferências”, Rick e Bruce vão desvendando uma China profunda. O leitor parte com eles rumo ao Extremo Oeste do país, onde diferentes grupos étnicos convivem com a aridez de vastos desertos. Quem lê a reportagem fica surpreso, como os próprios jornalistas, com a grande curiosidade da população local diante daquele grupo de americanos.
O texto, enriquecido com as fotografias de Bruce, é um registro contundente não só do momento pelo qual a China passava, mas de certa era do jornalismo. O trabalho demandou um ritmo que as redações hoje parecem desconhecer: houve farto tempo para a preparação – Rick fez um curso intensivo de mandarim e estudou sobre a história da China durante meses – e para as descobertas em campo.
Esse processo de imersão, que tanto fortalece o jornalismo, tem sido cada vez mais raro nos bastidores de uma reportagem, como ressalta Rick. “Tínhamos tempo para ir a campo fazer descobertas e análises. Agora o tempo em campo foi minimizado”, rememora com certo pesar.
Fortaleza em Jiayuguan encara o vazio do deserto. Crédito: National Geographic.
Entrevista completa
Pitacos: O senhor dá destaque no texto à curiosidade da população local diante de um grupo de americanos. Mas naquele tempo o Ocidente também estava muito curioso em relação à China, não?
Rick: O Ocidente estava seguramente curioso sobre a então chamada China Vermelha, mas estávamos familiarizados com a população chinesa porque parte dela imigrou para os países ocidentais ao longo dos séculos. A maioria das grandes cidades já tinha Chinatowns e restaurantes chineses eram bem populares. Mas muito poucos estrangeiros ocidentais tinham sido autorizados a visitar a China desde a revolução de Mao de 1949. Sabíamos algo sobre os expurgos e a Revolução Cultural, mas tínhamos uma ideia visual da China apenas a partir de fotografias e filmes antigos. O país tinha sido extremamente belicoso em alguns pronunciamentos durante os anos 1940 e 1950, e a mídia e os políticos ocidentais retratavam a China como uma séria ameaça. Nos EUA uma mentalidade de Guerra Fria sobre a “Ameaça Vermelha” coloriu muito da perspectiva dos americanos – e a brutal invasão do Tibet feita pela China em 1959 não contribuiu para mudar essa visão. Até que a visita surpresa de Richard Nixon à China em 1972 fez com que as atitudes do Ocidente em relação ao país começassem a mudar. Além disso, a China estava no meio da violenta Revolução Cultural e permaneceu isolada para a maior parte de quem era de fora. Então, a curiosidade no Ocidente sobre a China estava alta.
Pitacos: Quais eram as suas expectativas em relação ao país naquele momento?
Rick: Estava muito emocionado por ter uma oportunidade tão relevante. A National Geographic se empenhou por vários anos para conseguir que a Embaixada Chinesa permitisse a nossa entrada no país, mas nenhuma tentativa foi bem-sucedida. Antes da viagem, eu estava escrevendo um artigo sobre os desertos do mundo e queria chegar ao Gobi e/ou TaklaMakan. Tive pouco sucesso naquele texto, mas um dos meus editores sugeriu que propuséssemos um intercâmbio acadêmico sobre ciência do deserto. Cerca de um ano depois da proposta, recebemos um convite inesperado: enviar ao país um jornalista e um fotógrafo, junto a uma delegação de seis cientistas com especialização em desertos. Eu sabia que o país seria desafiador e uma das minhas primeiras decisões foi localizar um professor americano que falasse chinês fluentemente tanto para servir de tradutor quanto para me educar nos aspectos culturais e políticos da China. Ele se provou muito valioso.
Pitacos: O que mais o surpreendeu ao chegar lá?
Rick: Eu sabia que entraríamos numa situação restritiva e precisaríamos nos esforçar para ter acesso à vida cotidiana na China. Eu estava certo. Mas o que mais me surpreendeu foi o atraso do país em relação ao Ocidente e a quase total ausência de carros. Além disso, também fiquei muito surpreso com a homogeneidade da população nas grandes cidades – os uniformes de Mao eram vestidos por todos. Também me surpreenderam o tamanho e beleza do país, além do absoluto controle exercido sobre a população pelo governo, a propaganda estridente explodindo de alto-falantes nas cidades e a massificação do estilo de vida agrário. A vida em cidades pequenas parecia ter saído de um século diferente. Fomos até o Oeste do país, Xinjiang, onde os uigures estavam sendo mantidos em “fazendas estatais”, que eram um pouco como campos de concentração.
Pitacos: Como foi o processo de preparação para a viagem?
Rick: Eu falei acima sobre algumas das preparações – encontrar um intérprete tanto da língua quanto da cultura que fosse confiável. Também tive que localizar cinco outros especialistas em deserto. Fiz um curso intensivo de Mandarim por três meses. Mergulhei em estudos sobre a China – passado e presente. Não tínhamos um itinerário definitivo até chegar lá. Nos disseram que um lugar a que queríamos ir – as cavernas em Dunhuang – foi alagado. Não acreditamos neles, mas depois descobrimos que era verdade. Tivemos, porém, uma briga com os nossos guias sobre isso.
Pitacos: Muita coisa mudou do fim dos anos 1970 para cá. Naquele período, a China não tinha a relevância geopolítica que tem hoje. Como o senhor vê a ascensão chinesa e as mudanças pelas quais o país passou?
Rick: Eu voltei à China quatro vezes desde 1979, geralmente por uma semana ou menos, para visitar sítios paleontológicos ou arqueológicos. Também retornei com meu marido por quase um mês com um visto de turista um pouco antes da pandemia. A China se transformou enormemente. É como uma mágica transformação que começou em meados dos anos 1980, quando o governo decidiu modernizar e industrializar o país numa escala massiva. O vasto mundo agrícola que eu vi no passado foi reduzido. Os trabalhadores se mudaram para as cidades, onde brotaram enormes arranha-céus para abrigá-los e fábricas para produzir o que o mundo quer. Dezenas de cidades agora têm populações nos milhões. Um enorme investimento em infraestrutura produziu trens-bala que cruzam o país em alta velocidade, além de metrôs, estações de trem e aeroportos supermodernos.
Como eu vejo a vejo a ascensão da China? Tem sido marcante, mas não sei para onde tudo está se encaminhando. Eu sei que a mentalidade da população é mais comunal do que no mundo ocidental. As restrições são severas, especialmente em relação ao Covid. A tecnologia monitora todo mundo via cartões de identificação obrigatórios. Além disso, a lei do “um só filho” destruiu boa parte da estrutura familiar no país. A maioria das pessoas não tem irmãos e talvez só um ou dois primos. Os avós tomam conta das crianças porque todos os pais trabalham. As crianças também costumam ser mimadas, por serem filhas únicas. A educação é muito mais valorizada. Conversamos com várias pessoas que contaram histórias sobre como a vida era horrível no passado com as guerras e a fome massiva. Aqueles dias se foram, e as pessoas parecem dispostas a trocar algumas liberdades pessoais por mais segurança e a vida econômica muito melhor que a industrialização trouxe. Também parece haver mais um orgulho nacionalista.
Pitacos: Refletindo sobre o clássico artigo que escreveu sobre Sinatra sem entrevistá-lo, Gay Talese admitiu “que aquelas notáveis matérias do passado (apuradas à exaustão, organizadas de maneira criativa, distintas pelo aspecto e pelo estilo) agora estão cada vez mais raras, em parte devido à relutância dos editores de revistas em financiar os custos crescentes desse tipo de trabalho”. O que pensa sobre isso?
Rick: Não há dúvida de que o mundo das revistas e do jornalismo, pelo menos nos EUA, se tornou deficiente graças às realidades financeiras. Quando eu escrevi aquele artigo sobre a China, e todos os outros artigos que fiz até o meu último em, se não me engano, 2004, contávamos com orçamentos muito generosos. Tínhamos tempo para ir a campo fazer descobertas e análises. Agora o tempo em campo foi minimizado. A National Geographic não produz mais as reportagens em profundidade que eram capazes de realizar com uma equipe de redatores e fotógrafos interna. Me ofereceram uma empresa quando eu tinha 55 anos e eu aceitei porque podia ver as mudanças que estavam a caminho. Olho pra trás com orgulho e alguma tristeza, mas os tempos mudam. O mundo é diferente. Pessoas inteligentes e jovens como você serão importantes para interpretar o mundo para um novo público.
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