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O olhar cômico e alucinado sobre o jornalismo de Medo e Delírio em Las Vegas

Gabriel Iquegami


Se existe uma palavra que define esse livro é selvagem. Medo e Delírio em Las Vegas, a principal obra de Hunter S. Thompson, é considerada um marco no jornalismo gonzo e na quebra de todos os padrões conservadores que existiam na época, tanto da escrita jornalística quanto do comportamento norte-americano. Valendo-se de um contexto dos Estados Unidos no início dos anos 70 - em meio ao Vietnã, Nixon no poder, e uma herança recente do movimento de contracultura que já estava em decadência - o autor convida seu leitor para uma viagem alucinante a bordo do grande tubarão vermelho, tendo como ferramentas uma máquina de escrever e uma maleta cheia de todos os tipos de drogas, com destino a uma aventura hilária e frenética em Las Vegas. Tudo contado pelo olhar insano de alguém que se autodenomina “doutor” em jornalismo gonzo .


(Capa do Livro/ L&PM Pocket)


Originalmente publicadao como artigos para a revista Rolling Stone e posteriormente como livro-reportagem, essa obra é baseada na experiência pessoal de Thompson, sobre duas viagens que ele e seu amigo mexicano, Oscar Zeta Acosta, fizeram para cobrir dois eventos em Las Vegas. O primeiro foi a corrida de motos Mint 400, e o segundo uma convenção de narcóticos para policiais. Na obra, o autor utiliza os pseudônimos Raul Duke e Dr. Gonzo para representar, respectivamente, a si mesmo e ao seu amigo; além de trocar a nacionalidade deste último de mexicana para samoana.


É com esse pretexto que Thompson cria, uma hisestória de absurdos e momentos hilários, tudo com base no politicamente incorreto. Sendo toda a narrativa costurada por uma série de episódios engraçados e absurdos, que vão desde apostar corrida na rodovia mais movimentada da cidade até uma briga envolvendo um samoano drogado e uma camareira.


Personagens de caráter pelo menos duvidoso, Duke e Dr. Gonzo deixam contas astronômicas em dois hotéis, registram-se neles com nomes falsos, fazem uso de milhares de drogas diferentes, perseguem um ao outro com uma faca de cortar laranjas e até realizam um suposto “sequestro” de uma menina que fugiu de casa e tem uma fixação pela cantora Barbra Streisand.


Em outras palavras, Thompson oferece ao leitor diversas ações que, por mais absurdas que pareçam, combinam perfeitamente com o espaço em que se passam. Nenhum cenário seria tão representativo para essa história quanto a Las Vegas entorpecida que Duke explora, um lugar de exageros, cassinos, festas e drogas.


De todos os modos, para que toda essa construção de absurdos - as ações episódicas hilárias e o meio entorpecido - funcione, é preciso algo que organize tudo isso. E é aí que está toda a genialidade do livro: na narrativa.


É pela maneira como o livro é escrito, pelo jornalismo gonzo, que faz com que toda essa história delirante funcione.


Em nenhum momento Duke chega a concretizar sua reportagem ou a cobrir os fatos de maneira convencional, ele simplesmente age no improviso. Talvez seja por isso que, para muitos, o jornalismo gonzo não deveria ser considerado jornalismo. Esse gênero opta por abandonar a objetividade e lança mão de um narrador que se mistura com a ação e opina sobre ela a todo o momento, tendo como características uma prosa livre e várias digressões.


Ou seja, pode-se dizer que esse é um jornalismo parcial, subjetivo, cômico, que não leva a sério nem a si mesmo e muito menos aos fatos que narra. Todos os atributos que consideram como essenciais do jornalismo são quebrados, e é por isso mesmo que nenhum outro tipo de narração seria tão apropriada para uma obra como essa, que também quer quebrar com a convencionalidade do estilo de vida americano.


O novo olhar que Thompson dá à notícia é mais satírico e ácido, porém sem nunca deixar de ser crítico. Na obra, além de relatar a sua experiência como jornalista e seu “processo” de escrita, ele critica os Estados Unidos e o Sonho Americano.


Thompson herda ideias dos anos 60, dos hippies, da geração On the Road que saía pelas ruas pedindo carona e viajando pelo país, que viu a chegada das drogas nos Estados Unidos, que não queria mais seguir o antigo estilo de vida norte-americano de ser. Contudo, ao mesmo tempo ele vai de encontro à nova mentalidade dos anos 70, Nixon no poder, guerra às drogas e uma tentativa do governo de restaurar o Sonho Americano, um ideal de que qualquer um poderia alcançar o êxito nos EUA, apenas pelo trabalho duro.


É a partir daí que o livro entra em um dos seus principais tópicos, o American Dream. Por mais que Duke cite várias vezes ao longo do livro o quanto acredita nessa ideia, ele mesmo é o total oposto; ele é um usuário de drogas, mentiroso, aproveitador, oportunista que consegue enganar toda uma cidade, o completo contrário do esperado de alguém que acredita no sonho americano.


Ainda assim, se observá-lo pelo lado de alguém que conseguiu alcançar o êxito - em seu caso esse êxito seria enganar a todos e sair impune - então ele fez parte do sonho americano. Claro que de uma maneira politicamente incorreta.


Medo e Delírio em Las Vegas é muito mais que um livro engraçado como pode parecer à primeira vista, ele é uma grande crítica ao conservadorismo nos Estados Unidos e uma grande inovação no olhar que se pode ter sobre a notícia. Thompson fez sua fama com essa obra que rompe padrões ao passar todo o sentimento selvagem e louco de uma Las Vegas alucinada e, apesar de toda a sátira e quebra do convencional sobre como foi escrito, o livro nunca perde seu valor informativo: como um relato dos bastidores de uma reportagem que nunca ocorreu, de uma geração decadente, de um conservadorismo ultrapassado e de uma nova forma de se ver a notícia.



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