Sob os olhos atentos do repórter assassinado pela ditadura militar, a fundação de Brasília é contada como se fosse o nascimento de uma criança
Juliana Sorrenti
Página do Estado de S. Paulo com a reportagem Um Dia de Vida na Cidade Nova
Há 45 anos, 25 de outubro não é apenas mais um dia como qualquer outro. Na história brasileira, a data marca um dos vários capítulos brutais da ditadura militar: o assassinato do Vladimir Herzog. Jornalista, professor e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Vlado, como era o seu nome de batismo, foi encontrado morto nas instalações do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) em São Paulo. Um dia antes, ele havia ido ao lugar para prestar esclarecimentos sobre a sua ligação com o PCB. Amarrado a uma grade de 1,63 altura, a causa oficial da morte foi suicídio por enforcamento. O instrumento da ação teria sido o cinto do macacão dos prisioneiros do Doi-Codi. As fotos anexadas ao laudo e outros indícios, como o fato de os macacões não terem cinto e nem os sapatos cordões, mostram que o fim de Vlado não foi, enfim, uma escolha voluntária.
Considerado um dos símbolos da luta pela democratização do país, Herzog deixou um grande legado na história não apenas na morte, mas também na vida. Mais do que uma vítima da ditadura, ele foi, sobretudo, um jornalista competente. A carreira, que conta com passagens por veículos nacionais e internacionais, está repleta de trabalhos que refletem o talento de Vlado. Publicada em 1960, a reportagem Um Dia de Vida na Cidade Nova é um desses achados. Enviado especial do Estado de S. Paulo, a missão do repórter era cobrir a inauguração de Brasília como a nova capital do país. Com um pé na literatura, Vladimir Herzog foge do comum e entrega um texto poético e divertido, com metáforas e analogias. Tudo isso, é claro, sem perder os olhos críticos à velha política brasileira.
(Imagem: Acervo Instituto Vladimir Herzog)
O título já sugere o tom brincalhão da reportagem. A comparação entre Brasília e uma criança recém-nascida permeia todo o texto e o repórter marca a inauguração como seu primeiro dia de vida. Assim como em toda festa de criança, há brincadeiras e diversão: os fogos de artifícios e os espetáculos pirotécnicos são os grandes destaques da comemoração. No entanto, da mesma forma que os discursos dos familiares bêbados entediam a maior parte dos convidados, as missas não tiveram tanto sucesso e muitos aproveitaram a ocasião para colocar o sono em dia.
O ar de graça diverte o leitor e pode parecer despretensioso, mas o humor leve ganha acidez em momentos críticos. Em contraste ao fascínio da multidão pelas cores, luzes e sons em que se inaugura a bela capital, a poeira suja e mancha as golas dos figurões. Essa sujeira que é, ao mesmo tempo, literal e metafórica, é uma das críticas recorrentes do repórter. Brasília foi, afinal, construída no meio do vazio, e os discursos, segundo Herzog, seguem a mesma lógica.
Apesar da criança ser a estrela da noite, o pai também tem seus cinco minutos de fama. Juscelino Kubitscheck, o então presidente da república, é alvo da atenção do jornalista nos parágrafos sob o subtítulo “Metamorfose”. O comportamento brincalhão e o sorriso quase sempre constante do chefe do Executivo são lembrados pelos olhos atentos do repórter, que não deixam passar um detalhe sequer. Observador e irônico, ele ganha também um ar questionador no final.
“Brasília tem agora um dia de vida. Amanhã terá dois. Os que viram seu nascimento fazem conjecturas sobre o futuro da criança: tem boa saúde? Parece-se mais com o pai ou com a mãe? Será bem-sucedida na vida? Demorará muito a ter coqueluche?”
As perguntas levam a um sorriso de canto que poucas vezes é possível no jornalismo. Ao falar dessa criança – linda, porém suja – Vlado reserva um ar de desesperança bem-humorado que pode conquistar qualquer leitor, especialmente os jornalistas que querem inspirar-se em nomes atemporais. Intitulado “Rescaldo”, o nome do bloco faz referência às cinzas que contêm brasa. É difícil dizer com certeza o que ele quis dizer, mas essa estudante pensa que Herzog viu o futuro ainda tímido dessa nova capital. Ela, empoeirada e inabitada, ainda em cinzas, mas em brasa. E de brasa em brasa, nasce fogueira.
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