Ana Lourdes Grossi
Capa do filme no streamer Netflix (Imagem: Reprodução)
2020 nunca mais. Esse é o título do documentário fictício que propõe analisar criticamente os principais acontecimentos do ano em questão. E essa é uma das estratégias do filme: apesar do formato documental, o que vemos são atores interpretando papéis. 2020 não economiza ironias, ainda que nem sempre óbvias, para alcançar o tom ácido proposto. Em meio a tantos assuntos abordados, dois ganham destaque: a pandemia do coronavírus e as eleições presidenciais dos Estados Unidos. A partir deles, o filme, disponível na Netflix, nos leva a uma reflexão profunda sobre a comunicação na era da internet.
Antes mesmo dos primeiros trinta minutos de filme, o público é apresentado às principais personagens responsáveis pelas críticas mais duras a fake news, manipulação de informações, disparos em massa e falta de checagem de fontes por parte da população: Jeanetta Grace Susan (Lisa Kudrow, a Phoebe de Friends), porta-voz não oficial do governo, e Kathy Flowers (Cristin Milioti), uma dona de casa contaminada por correntes extremistas de notícias falsas. O CEO da tecnologia Bark Multiverse (Kumail Nanjiani) é outro que expõe, ainda que superficialmente, as estratégias de polarização da sociedade intensificadas pelas redes sociais. Esse conjunto de personagens caricatos, mas surpreendentemente verossímeis, somados a uma carga humorística equilibrada, levam ao espectador um convite ao pensar. Sob essa ótica, a precisão das críticas denuncia a realidade da desinformação a ser enfrentada pelo jornalismo.
Na primeira aparição de Jeanetta, o público é colocado frente a frente com uma personagem que nega veementemente os fatos nos quais não acredita, ainda que esses fatos sejam comprovadamente verdadeiros. Ou seja, uma crítica clara às pessoas que escolhem não acreditar em informações corretas e comprovadas. Não é difícil reconhecer “Jeanettas” por aí no mundo real, o que permite questionar: por que, justo na chamada “Era da informação”, a desinformação se torna cada vez mais comum?
Um estudo realizado por psicólogos da Associação Americana de Psicologia aponta como principal culpado o chamado “viés de confirmação”, isto é, a tendência que as pessoas têm de acreditar naquilo que confirma suas crenças preexistentes e ignorar dados que as questionem. Essa descoberta facilita a compreensão do porquê de diversas ideias negacionistas e conspiratórias, muitas beirando o absurdo, serem críveis para tantos. Nessa esfera, a comunicação pode ser utilizada como ferramenta para espalhar notícias falsas e dividir a sociedade de acordo com seus respectivos vieses.
Por isso, a comunicação social carrega consigo uma imensa responsabilidade social que deve ser compreendida e respeitada pelos profissionais desse meio. Todavia, quando a comunicação é descoberta como um instrumento que contribui para os interesses de um determinado grupo, os limites éticos da área começaram a ser ultrapassados. Considerando que as redes de conexão possibilitaram uma aproximação de pessoas e ideais e uma facilitação na coleta de informações pessoais, a invenção das redes sociais se mostrou uma grande aliada da parcela beneficiada pela desinformação.
“Nós, da indústria de tecnologia, criamos ferramentas que desestabilizam e destroem o equilíbrio da sociedade, em todos os países, de uma vez”, afirmou Tristan Harris, ex-designer ético do Google e cofundador do Centro de Tecnologia Humana, em entrevista para o documentário O dilema das redes. E completa: “Permitiremos que o sistema seja vendido para quem pagar mais? Que a democracia seja vendida ao alcançar qualquer mente desejada, vendendo uma mentira à população e criando guerras culturais? É isso que queremos?”
É nesse contexto que 2020 nunca mais estabelece a dualidade entre os outros dois personagens mencionados (Bark Multiverse e Kathy Flowers). Enquanto ela representa os milhares de usuários da internet contaminados e persuadidos pela desinformação, ele representa a parcela da sociedade que de alguma forma é privilegiada pelos algoritmos e pela manipulação feita através deles.
O cenário assustador retratado na ficção e ocorrido na realidade estadunidense não se afasta do que é enfrentado em nosso país. Um exemplo disso foi o uso de disparos de Fake News em massa no aplicativo de mensagens Whatsapp nas eleições de 2018. O, na época, gerente de políticas públicas do Whatsapp, Ben Supple, assumiu em uma palestra no Festival Gabo, o mais importante festival de jornalismo ibero-americano, que empresas utilizaram esse recurso, violando as diretrizes do aplicativo.
Com armadilhas sendo tão aproveitadas para atender aos interesses de determinados grupos e com cidadãos sendo manipulados com poucas chances de impedir que aconteça, é papel do jornalismo fazer com que a verdade sobreponha tais tentativas. Mas como fazer isso quando tantas pessoas se colocam contra os jornalistas? Apenas em 2021, foram 430 episódios de agressão a esses profissionais, segundo um relatório da Federação Nacional dos Jornalistas.
O filme 2020 nunca mais ajuda a entender mais um desafio entre tantos que o jornalismo enfrenta: seguir como pilar da democracia e da liberdade de expressão de um país, enquanto combate a desinformação à qual a população está constantemente exposta.
Serviço: Netflix
Filme: 2020 nunca mais
Diretores: Al Campbell e Alice Mathias
Duração: 1 hora e 10 minutos
Onde ver: Netflix
Excelente texto, Ana Lourdes. Parabéns 😀